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Um homem encontra livros, e o mundo muda!

  • Foto do escritor: gleniosabbad
    gleniosabbad
  • 8 de nov.
  • 4 min de leitura

Poggio, o Einstein do século XV


Por Glênio S Guedes ( advogado )


“Toda terra está aberta ao sábio, porque a pátria de uma alma virtuosa é o universo inteiro.”Demócrito, citado por Carlo Rovelli, A Realidade não é o que parece, p. 41, n. 27

1. O homem e o gesto


Era inverno de 1417. Um homem atravessava a cavalo as colinas úmidas do sul da Alemanha. Não buscava ouro, nem poder, nem absolvição: procurava livros.

Chamava-se Poggio Bracciolini, e o que encontrou mudaria o destino do pensamento ocidental. Desempregado após o colapso do papado de João XXIII, o florentino tornou-se um intelectual sem mestre, um espírito livre num mundo que ainda acreditava que todo saber devia ter dono. Mas Poggio escolheu servir apenas à palavra. Entrou em mosteiros esquecidos e, entre poeira e pergaminhos, reencontrou a pátria universal da alma — o conhecimento.


2. As escavações do espírito


Fulda, Cluny, São Galo, Monte Cassino: quatro nomes, quatro estações da arqueologia do saber. Nesses claustros silenciosos, Poggio desenterrou obras que jaziam há séculos sob o peso do esquecimento. Ali estavam o poema de Lucrécio, os discursos de Cícero, a pedagogia de Quintiliano, o tratado de arquitetura de Vitrúvio, as crônicas de Amiano Marcelino, os versos de Valério Flaco e até um livro de receitas atribuído a Apício.

Cada pergaminho era um corpo ressuscitado. De repente, Roma voltava a respirar — e com ela a confiança na razão, na medida e na beleza.


3. De Rerum Natura: o renascimento da matéria


Entre todos os achados, nenhum seria tão decisivo quanto De Rerum Natura, de Lucrécio. Inspirado em Demócrito e Epicuro, o poema descrevia o mundo como feito de átomos em movimento no vazio, regido não por caprichos divinos, mas por leis naturais.

Ao copiar esse texto, Poggio reacendeu uma chama quase extinta: a de que a natureza é autônoma e inteligível. Séculos depois, Galileu, Newton, Einstein e Rovelli dariam forma científica àquela intuição poética. Em Lucrécio, a física é poesia; em Rovelli, a poesia volta a ser física — e o fio entre ambos é o gesto de Poggio.


4. Quintiliano e o Direito: a palavra como justiça


Entre os pergaminhos de São Galo, Poggio encontrou a Institutio Oratoria, de Quintiliano. Ali estava a origem do humanismo jurídico: o orador ideal é o vir bonus dicendi peritus — “o homem bom, perito em dizer o bem”.

Graças a essa redescoberta, as universidades de Bolonha, Pádua e Orléans reformularam seus estudos, substituindo a escolástica pela eloquência ética. O jurista passou a ser também filólogo, moralista e intérprete da linguagem justa. Poggio, sem o saber, devolveu ao Direito sua dimensão humanista — a arte de falar bem para fazer o bem.


5. Outros renascimentos


Mas não foram só filósofos e juristas que Poggio ressuscitou.

Vitrúvio, com seu De Architectura, inspirou Brunelleschi, Alberti e Leonardo: a arquitetura voltou a ser geometria do belo, e o corpo humano tornou-se medida do cosmos. Amiano Marcelino, historiador e soldado, devolveu à historiografia o olhar empírico e crítico — o relato dos fatos antes da moral. Valério Flaco, com suas Argonáuticas, reacendeu o gosto pelas viagens e metamorfoses da alma, símbolo do herói moderno em busca de sentido. E até Apício, o cozinheiro romano, ao renascer nas cozinhas do Quattrocento, lembrou à Europa que a cultura também se mede pelo prazer da mesa — que pensar é um ato do corpo tanto quanto do espírito.

Cada livro recuperado foi uma pedra recolocada na ponte entre a Antiguidade e o mundo moderno.


6. O grande desvio


Em The Swerve, Stephen Greenblatt chamou o gesto de Poggio de grande desvio. O termo vem de Lucrécio — clinamen, o leve desvio dos átomos que cria o universo. Poggio desviou-se da obediência clerical para seguir a curiosidade, e nesse pequeno movimento a civilização mudou de curso.

Foi a vitória da dúvida sobre o dogma, da observação sobre o milagre, da palavra sobre o silêncio.


7. Epílogo — Quando um livro acende o mundo


À luz trêmula das velas, Poggio copiou versos e tratados que reacenderiam a filosofia, o Direito, a ciência, a arte e até o gosto de viver. De suas mãos renasceu o fio que une Demócrito a Lucrécio, Lucrécio a Galileu, Galileu a Einstein, Einstein a Rovelli — todos movidos por uma mesma certeza: a pátria do sábio é o universo inteiro.

Talvez seja isso o verdadeiro swerve: o instante em que um homem encontra um livro — e o mundo muda.


Referências


  • GREENBLATT, Stephen. The Swerve: How the World Became Modern. W. W. Norton & Company, 2011.

  • ROVELLI, Carlo. A Realidade não é o que parece: A estrutura elementar das coisas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017.

  • RICCI, Roberta (org.). Poggio Bracciolini and the Re(dis)covery of Antiquity. Firenze University Press, 2020.

  • Poggio Bracciolini and the Recovery of Ancient Literature. Veterum Sapientia Journal, 2023.

  • Poggio Bracciolini e a Recuperação da Literatura Antiga, Portal Populi (2023).



 
 
 

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