Os Mistérios da Língua Portuguesa: a protossociolinguística de Jaime de Magalhães Lima
- gleniosabbad
- 27 de set.
- 5 min de leitura
Por Glênio S Guedes ( advogado )
Resumo: O presente estudo debruça-se sobre o opúsculo A língua portuguesa e os seus mistérios (1923), de Jaime de Magalhães Lima, para nele lobrigar as sementes de uma disciplina vindoura: a Sociolinguística. Postula-se que o ensaio, conquanto impregnado de um idealismo romântico-nacionalista, patenteia fulgurantes intuições que antecipam magna parte das quaestiones centrais da moderna ciência da linguagem. Analisa-se a percepção da variabilidade linguística na postulada dicotomia das "duas dinastias" (a popular e a erudita); a valoração do substrato oral e prosódico, contida no primado do "canto" sobre a "letra"; e a veemente crítica ao jugo do prescritivismo gramatical. A análise, escorada na exegese de filólogos como Jesus Bello Galvão, que já apontava o caráter "pára-linguístico" da obra, conclui pelo mérito de Magalhães Lima como um notável protossociolinguista, cujo gênio lobrigou, para além das curiosidades filológicas, a complexa dinâmica social e cognitiva que governa o idioma.
Palavras-chave: Jaime de Magalhães Lima; Protossociolinguística; Variação Linguística; Norma Popular; Crítica ao Prescritivismo.
1. Introdução
Dentre os ensaios que, nos albores do século XX, buscaram sondar a alma de nossa língua, poucos se revelam tão prenhes de intuições fecundas quanto A língua portuguesa e os seus mistérios. Vindo a lume em 1923, o pequeno volume de Jaime de Magalhães Lima afigura-se, à primeira vista, um produto de seu tempo: um brado de insubmissão contra o positivismo filológico e um manifesto em prol de uma concepção vitalista e nacional do vernáculo. Contudo, para além da pátina ideológica, descortina-se um pensamento de invulgar acuidade, que antecipa, de modo surpreendente, os rumos que a ciência da linguagem tomaria.
Não é despiciendo notar que a relevância de Lima já fora assinalada por eruditos de tomo, como Jesus Bello Galvão, que em sua obra de 1979 saúda o ensaio de 1923 como um dos mais "inteligentes e lúcidos" de natureza "pára-linguística" , louvando-lhe a coragem de insurgir-se "contra o critério excessivamente gramatical com que se estudava o idioma". É, pois, sob o signo desta abalizada exegese que encetamos nosso percurso analítico, cujo fito é demonstrar como Magalhães Lima, mesmo sem o arcabouço teórico hodierno, pode e deve ser considerado um precursor dos estudos sociolinguísticos.
2. As "Duas Dinastias": Uma Percepção da Variação Social
A intuição fulcral de Magalhães Lima reside na postulação de uma dicotomia que perpassa não apenas a literatura, mas a inteira tessitura social portuguesa. De um lado, situa a "dinastia académica", "autoritária e cortesã", cuja figura totêmica é Camões; de outro, a "dinastia popular", "espontânea, humilde, desprendida", encarnada em Gil Vicente. Este antagonismo, que o autor enxerga como um profundo "divórcio de almas", projeta-se sobre a própria língua, dando origem a duas gramáticas: uma, a culta, "limitada, decretada"; outra, a popular, regida por um "palpitar e instintos" próprios.
Ao conferir legitimidade a esta gramática do povo, ao reconhecê-la "tão respeitável" quanto a norma erudita, Magalhães Lima opera um gesto de extraordinária modernidade. Antecipava, dessarte, sem o utillaje conceitual de que hoje dispomos, o que a Sociolinguística, mormente a partir dos trabalhos seminais de William Labov, viria a sistematizar: o estudo da variação diastrática e a superação do juízo de valor sobre as variedades linguísticas. A sua formulação das "duas dinastias" pode ser lida como uma primeira e engenhosa aproximação aos fenômenos de diglossia, em que se reconhece a coexistência, no seio de uma mesma comunidade, de diferentes sistemas linguísticos com funções e prestígios distintos.
3. O "Canto" e a "Letra": A Primazia da Oralidade e da Prosódia
Se a percepção da variabilidade social já é digna de nota, é na sua meditação sobre os "mistérios" da língua que o pensamento de Lima atinge o ápice de sua originalidade. O verdadeiro enigma, para ele, não se cifra em arcanos etimológicos, mas na dimensão sonora e musical do idioma – o que ele denomina, sinestesicamente, o "canto". Em oposição à "letra", a face escrita e gramaticalizada da língua, o "canto" representa o substrato oral, prosódico e afetivo, cujas "modalidades subtis" escapam à codificação.
Trata-se de um conhecimento de "transmissão intuitiva", de algo que "só de ouvido se aprende". Como bem apontou Jesus Bello Galvão, Lima sentia a insuficiência dos estudos de seu tempo, que descuravam "a entoação e o ritmo" , e ansiava por uma gramática mais "extensa e complexa", capaz de abarcar a "concepção musical" da linguagem. Galvão diagnostica com precisão a angústia de Lima: o escritor-pensador, desiludido com uma ciência que lhe parecia estéril , via-se forçado a buscar na "região dos mistérios" uma explicação para o gênio da expressão, sem possuir, como ele mesmo confessa, a "ferramenta" técnica para tal desiderato. Essa ferramenta seria forjada pela Estilística, disciplina que, segundo Galvão, já vinha em outras pátrias esclarecendo aquilo que, para Lima, ainda se velava em mistério.
A intuição de Lima, portanto, é preclara: ele reconhece que o significado transcende o léxico e a sintaxe, residindo na melodia da frase, no acento afetivo, na pausa significativa. Antecipa, com isto, os domínios da Prosódia moderna, da Análise do Discurso e o conceito de gramática internalizada, o saber tácito que conforma a competência de todo falante nativo.
4. Um Legado Ambivalente: Entre a Intuição e o Essencialismo
Cumpre, todavia, a uma análise isenta de paixão, sopesar o legado de Magalhães Lima em sua inteireza. Se suas intuições são fulgurantes, seu arcabouço filosófico padece das limitações de seu tempo. A própria noção de "mistério" postula uma inefabilidade que se opõe ao desígnio da ciência de descrever e explicar.
Sua obra acha-se impregnada de um "viés romântico-nacionalista", como bem aponta a crítica. Conceitos como "génio da raça" e "alma popular", conquanto poeticamente sugestivos, remetem a um essencialismo que a linguística e as ciências humanas como um todo se esforçaram por superar. A língua, sabemos hoje, não é emanação biológica ou telúrica, mas sim uma complexa construção histórico-social e cognitiva. Outrossim, sua justa crítica ao prescritivismo gramatical não o exime de praticar um purismo próprio, ao verberar contra as influências alienígenas.
5. Conclusão
Em guisa de remate, reitere-se que A língua portuguesa e os seus mistérios não é um tratado de linguística, senão um ensaio literário-filosófico de rara penetração. O mérito imperecível de Jaime de Magalhães Lima não foi o de oferecer respostas sistemáticas, mas o de formular as perguntas certas. Ele logrou deslocar o foco de uma filologia por vezes anquilosada para a dinâmica viva do uso, intuindo que os verdadeiros arcanos do idioma residem na "complexa dinâmica social e cognitiva que governa o uso linguístico".
O reconhecimento de sua importância por um filólogo da estatura de Jesus Bello Galvão atesta seu valor perene. Magalhães Lima permanece, pois, como figura de proa na historiografia das ideias linguísticas em Portugal e no Brasil: um espírito arguto e sensível que, nas fronteiras entre a filosofia e as letras, descortinou os vastos horizontes que a Sociolinguística viria, mais tarde, a explorar com o rigor da ciência.
Referências
GALVÃO, Jesus Bello. Subconsciência e Afetividade na Língua Portuguesa. 3. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1979.
LIMA, Jaime de Magalhães. A língua portuguesa e os seus mistérios, 1923.


Comentários