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O Rigor Filológico e o Legado de Carolina Michaëlis de Vasconcelos

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    gleniosabbad
  • 2 de out.
  • 4 min de leitura

(Reflexões sobre a Primeira Filóloga de Portugal e a Palavra “Saudade”)


Por Glênio S Guedes ( advogado )


Resumo


Este artigo propõe uma reflexão sobre a vida e a obra de Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1851-1925), a filóloga alemã que se tornou a maior especialista em estudos lusitanos de seu tempo. Analisa-se o seu pioneirismo como primeira mulher a lecionar em uma universidade portuguesa e o seu papel como mediadora cultural entre Portugal e a Alemanha. O foco recai sobre o rigor filológico por ela introduzido na crítica textual portuguesa, evidenciado em obras magnas como o Cancioneiro da Ajuda. Por fim, discute-se a relevância de sua leitura no cenário acadêmico contemporâneo, destacando sua contribuição para a definição da identidade portuguesa através da análise do vocábulo “saudade”.


Palavras-Chave: Carolina Michaëlis; Filologia Portuguesa; Cancioneiro da Ajuda; Pioneirismo Feminino; Saudade; Crítica Textual.


1. Introdução: A Filóloga e a “Segunda Pátria”


Carolina Wilhelma Michaëlis de Vasconcelos nasceu em Berlim e fixou-se em Portugal por casamento, mas o seu legado transcendeu a vida pessoal. Trouxe o rigor científico da escola germânica para os estudos da língua e da literatura portuguesa, em contraste com práticas editoriais menos sistemáticas vigentes no meio académico da época.

Sua vasta obra, que abrange cerca de duzentos títulos em filologia, etnografia e pedagogia, atesta uma erudição sólida e multifacetada, conquistada em grande parte pelo autodidatismo, visto que o ensino universitário estava vedado às mulheres do seu tempo.


2. O Rigor Metodológico e a Crítica Textual


O grande legado de Michaëlis reside na aplicação do método científico à crítica textual. Ela entendia a Filologia Portuguesa como o “estudo científico, histórico e comparado da língua nacional em toda a sua amplitude”, abrangendo gramática, etimologia, literatura e o que chamava de expressão do “espírito nacional”.


2.1. Sá de Miranda e o Cancioneiro da Ajuda


Esse rigor cristalizou-se em duas edições críticas de referência:


  • Poesias de Francisco de Sá de Miranda (1885): aplicou um método completo, com pesquisa exaustiva de materiais, relação genética entre testemunhos e normas explícitas de transcrição.

  • Cancioneiro da Ajuda (1904): obra monumental que lhe ocupou mais de 27 anos de estudo. A decifração e restituição do códice da poesia trovadoresca galego-portuguesa demonstraram um trabalho pioneiro, submetido à metodologia filológica mais avançada de seu tempo.


Michaëlis também foi incisiva em críticas ao estado editorial de autores centrais como Camões, cujos textos eram frequentemente deturpados por edições descuidadas, e de tradutores como Castilho, que vertia Goethe e Shakespeare sem consulta ao original.


3. Pioneirismo, Reconhecimento e a “Alma Portuguesa”


Apesar das barreiras de género, Michaëlis quebrou paradigmas: foi a primeira mulher a lecionar em uma universidade portuguesa (Faculdade de Letras de Coimbra, 1911) e a primeira mulher admitida na Academia das Ciências de Lisboa. Recebeu o título de Doutora Honoris Causa pelas Universidades de Friburgo (1893), Coimbra (1916) e Hamburgo (1923).

Em sua análise cultural, Carolina não cunhou, mas reforçou a noção romântica da “alma portuguesa”, identificando-a com um “sentimentalismo brando e bucólico” e um “saudosismo melancólico” expresso pela palavra “saudade”. Para ela, esse vocábulo resumia de modo singular o complexo sentimental que vibra na lírica trovadoresca e que, em grande medida, molda a literatura portuguesa.


4. Como Ler Carolina Michaëlis Hoje em Dia


A leitura de Carolina Michaëlis de Vasconcelos na contemporaneidade é fundamental por três razões:


  1. Modelo de Rigor e Ética Acadêmica: em tempos de circulação rápida da informação, sua pesquisa meticulosa e a busca incessante pela autenticidade textual oferecem um padrão ético e metodológico para qualquer investigação humanística.

  2. Fundamento da Filologia Lusitana: seus estudos são alicerces da crítica textual portuguesa, em particular no campo da poesia medieval e quinhentista. Ler Michaëlis é revisitar o nascimento da filologia em Portugal.

  3. Pioneirismo Feminino e Engajamento Social: defendeu a instrução feminina e a nova situação jurídica da mulher em Portugal, ao mesmo tempo em que denunciava o “enormíssimo desinteresse dos Portugueses pelo seu património”. Seu exemplo permanece atual no debate sobre gênero e cultura.


5. Conclusão


Carolina Michaëlis de Vasconcelos é mais que uma filóloga. Sua obra, marcada pelo rigor germânico e pela paixão lusitana, constitui ponte entre culturas, modelo de dedicação feminina na academia e chave de compreensão da identidade literária portuguesa. A “saudade” que sua ausência inspira continua sendo preenchida pelo estudo e pela admiração que desperta em cada nova geração de leitores e investigadores.


Referências


  • BARROS, Teresa Leitão de. Escritoras de Portugal. Vol. 2. Lisboa: s.n., 1924.

  • CIDADE, Hernâni. “D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos”. In: SERRÃO, Joel (org.). Dicionário de História de Portugal. Vol. IV. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1971.

  • EY, Luise. “Dona Carolina Michaëlis na intimidade”. Boletim da Segunda Classe da Academia das Ciências de Lisboa, 1927.

  • MICHAËLIS DE VASCONCELOS, Carolina. Das Origens da Poesia Peninsular: estudo seguido de 47 cartas dirigidas a Alfredo Pimenta. Lisboa: Imprensa Nacional, 1931.

  • MICHAËLIS DE VASCONCELOS, Carolina. Lições de Filologia Portuguesa segundo as Prelecções feitas aos cursos de 1911-12 e 1912-13. Lisboa: Revista de Portugal, 1946. (Reimpressão Dinalivro).

  • PINTO CORREIA, Maria Assunção. O essencial sobre Carolina Michaëlis de Vasconcelos. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986.

  • TORRES, Ruy D’Abreu. Cultura Portuguesa. Vol. 16. s.l.: s.n., s.d.

  • VASCONCELOS, José Leite de. Etnografia Portuguesa. Tentame de sistematização. Vol. I. Lisboa: Imprensa Nacional, 1980.

 
 
 

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