O INFINITIVO FLEXIONADO: UM IDIOMATISMO "CIUMENTO" DA LÍNGUA PORTUGUESA
- gleniosabbad
- 1 de out.
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Glênio Sabbad Guedes ( advogado )
Resumo
Este artigo propõe uma análise aprofundada do infinitivo flexionado, traço morfossintático distintivo da língua portuguesa e do galego. A reflexão parte da experiência pessoal do tradutor Paulo Rónai e da percepção de comentadores como Hélio Schwartsman para mergulhar nas origens do fenômeno – à luz da filologia românica – e em seu uso estilístico na literatura e na gramática normativa. São examinadas as tentativas de sistematização por autores como Said Ali, Frederico Diez e Jerônimo Soares Barbosa, com o objetivo de situar essa construção no cruzamento entre história linguística, norma gramatical e a liberdade da expressão estilística.
Palavras-chave: infinitivo pessoal; morfossintaxe; português; galego; filologia românica.
“Tenho fascínio pelo infinitivo conjugado, um particularismo do galego e do português inexistente em outras línguas indo-europeias. O infinitivo conjugado é uma contradição que carrega um problema metafísico, já que confere atributos de pessoa e número à forma verbal que exprime a ação em estado puro e, pela lógica, não comportaria flexões.” — Hélio Schwartsman, em "Glossogênese", para a
Folha de S.Paulo, 2023.
Sumário
Introdução
Origem e Hipóteses Filológicas
2.1. Hipótese da Criação Vernácula
2.2. Hipótese da Herança Latina
2.3. A Percepção do Aprendiz: Um “Latim sem Dentes”
Tentativas de Sistematização
3.1. Jerônimo Soares Barbosa
3.2. Frederico Diez
3.3. Said Ali
Guia Prático: Quando (e Por Que) Flexionar?
4.1. Casos de Infinitivo Não Flexionado
4.2. Caso Obrigatório de Flexão
4.3. Casos Facultativos (Estilística)
Conclusão
Anexos Linguísticos
Anexo 1 – Ocorrências do Infinitivo Flexionado em Autores Clássicos
Anexo 2 – Comparação com o Galego, o Mirandês e o Húngaro
Anexo 3 – Frequência em Corpus
Referências
1. Introdução
No seu célebre ensaio "Como Aprendi o Português", o tradutor e intelectual húngaro Paulo Rónai narra o exato momento de sua estupefação ao se deparar com uma das joias raras do nosso idioma. "A descoberta do infinitivo pessoal foi uma surpresa e abalou-me bastante o orgulho patriótico, pois julgava-o riqueza exclusiva do húngaro". Essa confissão, vinda de um poliglota apaixonado por idiomas, ilustra perfeitamente o fascínio que o infinitivo flexionado exerce. Trata-se de uma forma que confere ao infinitivo desinências de número e pessoa, desafiando a noção tradicional do infinitivo como forma impessoal e invariante. Ao atribuir-lhe flexão, introduz-se no cerne da estrutura verbal uma tensão entre a ação pura e a atribuição subjetiva. Este artigo, enriquecido com as memórias de Rónai e apoiado nos trabalhos de mestres da filologia e da gramática, propõe-se a desvendar, de forma didática, a origem, a conturbada sistematização e o uso deste que é um verdadeiro tesouro – e por vezes um quebra-cabeça – do nosso idioma.
2. Origem e Hipóteses Filológicas
A jornada do infinitivo pessoal é tão antiga quanto o próprio idioma português, aparecendo em textos desde antes da separação formal entre o galego e o português. A questão de sua origem ainda é objeto de debate entre filólogos, com duas correntes principais disputando a explicação.
2.1. Hipótese da Criação Vernácula
Defendida por Adolfo Coelho e Leite de Vasconcelos, essa tese parte do uso analógico da forma simples do infinitivo acrescida de desinências que denotam pessoa, a partir de estruturas do tipo “eu ter saúde é bom”. A ideia é que, a partir de frases como essa, o falante começou a sentir a necessidade de especificar a pessoa. Por analogia com outras formas verbais, a sistematização levaria naturalmente a formas como
teres, termos, terdes, terem, dando origem ao infinitivo pessoal.
2.2. Hipótese da Herança Latina
Mais aceita atualmente, especialmente após os estudos de José Maria Rodrigues, essa teoria propõe que o infinitivo pessoal descende diretamente do imperfeito do subjuntivo latino. Formas como amarem, amares, amaret, etc., não teriam desaparecido na antiga Galécia e em Portus Cale como no resto da Romania, mas evoluído fonética e morfologicamente para o nosso infinitivo flexionado:
amarem > amar
amares > amares
amaret > amar
amaremus > amarmos
amaretis > amardes
amarent > amarem
Essa característica é tão intrínseca ao português que Frederico Diez observou que autores portugueses que escreviam em espanhol chegavam a utilizar, por engano, o infinitivo flexionado naquela língua, o que evidencia sua força internalizada no sistema português.
2.3. A Percepção do Aprendiz: Um “Latim sem Dentes”
Para um estrangeiro, o primeiro contato com a morfologia portuguesa pode gerar reações curiosas. Paulo Rónai, ao iniciar seus estudos, teve a impressão de que o português escrito era como "um latim falado por crianças ou velhos, de qualquer maneira gente que não tivesse dentes", espantando-se como palavras latinas "cheias e sonoras" haviam perdido tantas consoantes para se tornarem lua, dor ou pessoa. Além do já citado "abalo" de seu orgulho patriótico, Rónai logo se afeiçoou a outras estruturas, como as formas mesoclíticas (falar-te-ei, lembrar-nos-emos), que se lhe apresentavam como um "corte anatômico" de palavras que em outras línguas já estavam fundidas, revelando "dotes de análise e síntese em todos os que as empregavam".
3. Tentativas de Sistematização
A tentativa de sistematizar o uso do infinitivo flexionado é, nas palavras de Napoleão Mendes de Almeida, "verdadeiramente desconcertante". A questão tem gerado imensas controvérsias e levou gramáticos a formular regras que, não raro, eram desmentidas pelo uso dos grandes escritores.
3.1. Jerônimo Soares Barbosa
Foi um dos primeiros a tentar regular seu uso com a regra clássica: o infinitivo se flexiona quando o sujeito é diferente do da oração principal; não se flexiona quando os sujeitos são idênticos.
3.2. Frederico Diez
O grande romanista alemão propôs outra abordagem: o infinitivo se flexiona sempre que pode ser substituído por uma forma verbal finita. Por exemplo, "para comerem" seria válido porque equivale a "para que comessem". Essa regra justificava muitos usos que a de Soares Barbosa não cobria.
3.3. Said Ali
Considerado por muitos como quem deu o "tiro de misericórdia" na questão, Said Ali demonstrou que o uso do infinitivo flexionado não se explica apenas pela gramática. Fatores como clareza, harmonia e ênfase são determinantes estilísticos que muitas vezes se sobrepõem às regras formais. A conclusão é que a escolha pertence mais ao domínio da Estilística do que ao da Gramática normativa.
4. Guia Prático: Quando (e Por Que) Flexionar?
Apesar da complexidade, é possível traçar um guia didático.
4.1. Casos de Infinitivo Não Flexionado
O infinitivo permanece invariável, em sua forma pura, nos seguintes contextos:
Valor genérico ou nominal: Viver é lutar.
Valor imperativo: Não matar. Cessar o fogo, paulistas!
Locuções verbais com verbo auxiliar: Podemos sair. Começaram a correr.
Com pronomes oblíquos átonos como sujeito, regido por ver, ouvir, deixar, fazer, mandar: Viu-os partir ; deixai-os morder uns aos outros.
4.2. Caso Obrigatório de Flexão
A regra de ouro, o caso em que a flexão é obrigatória, é uma só: quando o infinitivo possui um sujeito explícito e distinto do sujeito da oração principal. Exemplo:
Veio-me à lembrança a notícia de estarem fechadas todas as farmácias..
4.3. Casos Facultativos (Estilística)
Aqui a mágica acontece, guiada pela clareza e pela ênfase. Gladstone Chaves de Melo resume: o infinitivo não flexionado é mais vago; o flexionado é mais concreto e dinâmico.
Ênfase estilística ou distanciamento do auxiliar: Possas tu, descendente maldito (...) Seres presa de vis aimorés!. A forma "Ser" seria gramatical, mas "Seres" é imensamente mais vigorosa.
Substantivo como sujeito (e objeto de ver, ouvir, etc.): Ambas as construções são possíveis : Fazia ramalhar as árvores vs. Viu saírem e entrarem mulheres.
Realce do agente, mesmo com sujeito igual: Foram dous amigos à casa de outro, a fim de passarem as horas de sesta.
5. Conclusão
O infinitivo flexionado é um traço identitário do português; é herança, mas também invenção. A jornada de Paulo Rónai oferece uma lição final. Após anos estudando a língua nos livros, ele teve uma "decepção tremenda" em Portugal, onde passou seis semanas sem conseguir entender "palavrinha da língua falada". O alívio veio ao chegar ao Brasil: "Que alívio logo de entrada! O Brasil recebia-me com uma linguagem clara, sem mistérios". Foi aqui que ele pôde finalmente exclamar: "O idioma que eu aprendera em Budapeste era mesmo o português!..".
Sua experiência mostra que uma língua é mais do que regras; é um organismo vivo. O infinitivo flexionado escapa à rigidez normativa para ocupar um lugar de liberdade expressiva , testemunhando a criatividade linguística que desafia classificações binárias entre regra e uso. Sua existência, afinal, é a assinatura de um idioma que soube, como poucos, conjugar o verbo e o nome, a ação e a pessoa, de uma forma singularmente expressiva.
6. Anexos Linguísticos
Anexo 1 – Ocorrências do Infinitivo Flexionado em Autores Clássicos
Gonçalves Dias: “Seres presa de vis aimorés!”
Machado de Assis: “Viu saírem e entrarem mulheres.”
Alexandre Herculano: “Fazia ramalhar as árvores.”
Padre Antônio Vieira: “Antes vos deixardes matar que pecar.”
Camilo Castelo Branco: “Convidou-os a retirarem-se.”
Anexo 2 – Comparação com o Galego, o Mirandês e o Húngaro
Galego: “Para chegarmos a tempo, saímos cedo.” → O galego conserva o infinitivo pessoal com vitalidade, especialmente em construções subordinadas com sujeitos explícitos.
Mirandês (forma adaptada): “Pa istarmos juntos, fuimus á feira.” → Embora menos sistemático, o mirandês apresenta vestígios de flexão do infinitivo, notadamente na primeira pessoa do plural.
Húngaro: “Szeretnélek meglátogatni.” (Tradução: “Gostaria de te visitar.”) → A forma szeretnélek incorpora o pronome de segunda pessoa singular (-lek) diretamente no verbo szeretni (“amar” ou “gostar”), que está no modo condicional, funcionando como auxiliar de um infinitivo. Embora não relacionado geneticamente ao português, o húngaro oferece um interessante paralelo tipológico, evidenciando que a personalização do infinitivo, embora rara, pode emergir em sistemas linguísticos diversos.
Anexo 3 – Frequência em Corpus
Segundo o Corpus do Português (Davies, 2006), o infinitivo flexionado aparece:
Com mais frequência em textos literários, jurídicos e acadêmicos.
É menos comum na oralidade e em registros informais.
Formas impessoais como “para a gente sair” predominam na fala cotidiana.
7. Referências
BARBOSA, Jerônimo Soares. Grammatica Philosophica da Língua Portuguesa. Lisboa: Tipografia Rollandiana, 1822.
CHAVES DE MELO, Gladstone. A Língua Portuguesa: Estrutura e Realidade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1981.
COELHO, Adolfo. Estudos de Filologia Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1886.
DIEZ, Friedrich. Grammaire des Langues Romanes. Paris: Franck, 1836.
MENDES DE ALMEIDA, Napoleão. Dicionário de Questões Vernáculas. São Paulo: Saraiva, 1987.
RÓNÁI, Paulo. Como Aprendi o Português e Outras Aventuras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
RODRIGUES, José Maria. História da Língua Portuguesa. Lisboa: Bertrand, 1897.
SAID ALI. A Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1922.
SCHWARTSMAN, Hélio. Glossogênese. Folha de S.Paulo, São Paulo, 10 maio 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2023/05/glossogenese.shtml. Acesso em: 10 jul. 2025.
VENÂNCIO, Fernando. Assim Nasceu Uma Língua. Lisboa: Guerra & Paz, 2022.


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