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NARCOTERRORISMO: quando a semântica retórica – e não a conceitual ou jurídica – produz danos

  • Foto do escritor: gleniosabbad
    gleniosabbad
  • 29 de out.
  • 6 min de leitura

Posso atribuir qualquer sentido às palavras? (O argumento de Humpty Dumpty)


Por Glênio S Guedes ( advogado )

“Quando eu uso uma palavra”, disse Humpty Dumpty, “ela significa exatamente o que eu quero que signifique — nem mais, nem menos.”— Lewis Carroll, Alice Através do Espelho

1. A semântica que constrói o mundo


No primeiro capítulo de Do que é feito o pensamento, Steven Pinker (2022) descreve um episódio real ocorrido após o ataque às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001. O ponto de partida é aparentemente banal: quantos “eventos” ocorreram naquele dia? Um ou dois?

Essa dúvida semântica teve impactos jurídicos e econômicos concretos. A seguradora responsável pelos prédios deveria pagar uma indenização por “evento”. Se fossem dois, o valor dobraria. Se um, seria único. Não havia discordância sobre os fatos — dois aviões, duas torres, um só plano terrorista —, mas o conflito estava na palavra.

Pinker demonstra com esse caso que as palavras não são meros rótulos de fatos, mas molduras que determinam como o mundo é interpretado e, portanto, como o direito e a moral o tratarão. Ao decidir se houve um ou dois eventos, um tribunal estava decidindo, implicitamente, a natureza ontológica do acontecimento.

Assim, antes mesmo da lei ou da sentença, a semântica produz efeitos jurídicos. E quando o vocabulário é capturado pela retórica — pela emoção e pelo cálculo político — o resultado é o que Pinker chama de “confusão performativa”: palavras que, em vez de esclarecer, criam realidades paralelas.


2. Narcoterrorismo: a criação de um híbrido semântico


O termo narcoterrorismo nasceu no Peru, em 1983, quando o presidente Fernando Belaúnde Terry o utilizou para descrever ataques do Sendero Luminoso a empresas ligadas ao combate às drogas. Mais tarde, durante o governo Reagan, o vocábulo foi apropriado pela retórica da “guerra às drogas” para fundir duas ameaças em uma só: o tráfico e o terror.

Mas, do ponto de vista técnico e conceitual, essa fusão é imprecisa e perigosa. Segundo a UNODC (United Nations Office on Drugs and Crime), o terrorismo é o uso deliberado da violência com motivação política ou ideológica, enquanto o narcotráfico é o comércio ilícito com motivação econômica. O narcoterrorismo, portanto, seria apenas o uso de métodos terroristas (como sequestros, atentados ou execuções públicas) por grupos ligados ao tráfico — não uma nova categoria ontológica do crime.

Na América Latina, poucos grupos se enquadrariam tecnicamente nessa definição. Mesmo as FARC colombianas, que se financiaram pelo tráfico, mantinham uma agenda ideológica explícita. Já o PCC (Primeiro Comando da Capital) e o Comando Vermelho, segundo o Relatório de Inteligência da Polícia Federal de 2023, não têm finalidade política ou religiosa — operam como organizações econômicas violentas, voltadas à gestão de territórios e mercados ilícitos.

Portanto, chamar o PCC ou o Comando Vermelho de “organizações narcoterroristas” é equivocadamente metafórico. É o que Pinker chamaria de metáfora conceitual degenerada: um uso simbólico que pretende iluminar, mas apenas confunde.


3. A tentação política de legislar sobre metáforas


O artigo do Valor Econômico (29/10/2025) registra o eco desse equívoco: ao chamar de “guerra ao narcoterrorismo” uma operação policial no Rio de Janeiro, o governador introduziu, por via retórica, uma categoria inexistente na lei penal brasileira. A fala, porém, repercutiu de modo eficaz — transformou-se em manchete e justificou o uso de força excepcional.

Juristas como Rafael Strano e Rafael Alcadipani lembram que não há tipificação penal do narcoterrorismo, e que o tráfico, embora violento, não visa ao terror ideológico, mas ao lucro. A semântica da guerra — “narcoterrorismo”, “inimigo interno”, “combate total” — desloca o discurso jurídico para o campo simbólico da guerra moral, onde não há gradações, apenas amigos e inimigos.

É exatamente esse o tipo de distorção que Pinker diagnostica quando analisa palavras como terror, liberdade,  ou romance: cada uma carrega valores afetivos que se infiltram na razão. A palavra narcoterrorismo opera como um shortcut emocional, uma metáfora mobilizadora de medo e autoridade.


4. O Humpty Dumpty penal: quando o governante decide o que as palavras significam


O jurista Lenio Streck, em crítica recente publicada pela ConJur sobre o “populismo penal” dos governadores do Sul e Sudeste, comparou-os a Humpty Dumpty, o personagem de Lewis Carroll que dá às palavras o sentido que quer. Ao propor, por exemplo, o monitoramento eletrônico sem ordem judicial e o endurecimento arbitrário de audiências de custódia, os governadores praticam o mesmo vício semântico: tornam o sentido das palavras dependente do poder, não do texto jurídico.

Streck ironiza:

“Suspeito é o que o policial disser que é. Um Humpty Dumpty transportado para dentro do CPP.”

Essa observação resume o perigo da retórica semântica. Quando o Estado se arroga o direito de redefinir conceitos conforme sua conveniência, rompe-se o pacto de confiança que sustenta o Direito como linguagem pública. Não se trata apenas de erro terminológico — é uma crise de legitimidade semântica.


5. Entre o conceito e o slogan: o populismo penal


A retórica do narcoterrorismo insere-se num fenômeno mais amplo que especialistas denominam populismo penal — a produção de leis e discursos penais voltados à comoção pública, não à eficácia jurídica. Como adverte Davi Tangerino, esse tipo de discurso cria “amarrações burras e exageradas” e agrava o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional. É o que Welington Arruda chama de “atalho emocional”: punir mais parece solução, mas é apenas “um torniquete institucionalizado”.

No plano linguístico, trata-se de um deslizamento da semântica conceitual — que busca precisão e verificabilidade — para a semântica retórica, que busca adesão. Enquanto a primeira é racional e aberta ao debate, a segunda é emocional e fechada à crítica.


6. Narcoterrorismo e o mito do inimigo absoluto


Ao ser usado como rótulo totalizante, narcoterrorismo elimina nuances e transforma o traficante em terrorista, o território pobre em campo de guerra e o policial em soldado. Essa operação simbólica redefine a gramática do inimigo, permitindo que medidas de exceção se tornem plausíveis sob o véu da semântica moral.

Em termos foucaultianos, é a linguagem que legitima o biopoder: quem controla o vocabulário, controla as vidas. E, como lembraria Pinker, é também a cultura que define o horizonte moral do discurso — razão pela qual o controle semântico é o primeiro passo de qualquer populismo.


7. Conclusão: entre Pinker e Streck, o dever de pensar antes de falar


O caso das Torres Gêmeas ensinou que as palavras têm peso jurídico; o caso do narcoterrorismo mostra que elas podem ter peso político e ético devastador. Ao fundir tráfico e terrorismo, a retórica cria uma categoria intermediária que não pertence nem à lei nem à realidade — apenas à emoção. O jurista que legisla sobre metáforas e o político que as propaga são, ambos, discípulos de Humpty Dumpty: acreditam que podem dar às palavras o sentido que quiserem.

Mas, como adverte Streck, “o Direito é uma linguagem pública, não privada”. E como ensina Pinker, “falar com clareza é pensar com responsabilidade”.

A má retórica é o vício da pressa;a boa semântica é o exercício da razão.

Bibliografia


  • PINKER, Steven. Do que é feito o pensamento: a linguagem como janela para a natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

  • CARROLL, Lewis. Alice Através do Espelho e o que ela encontrou por lá. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. São Paulo: Zahar, 2018.

  • STRECK, Lenio Luiz. “Ideias de governadores contra crime são vistas como populismo penal.” Consultor Jurídico, 30 mar. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br.

  • ARTIGO. “Ideias de governadores contra crime são vistas como populismo penal.” ConJur, 30 mar. 2024.

  • VALOR ECONÔMICO. “Autoridades reacendem debate sobre narcoterrorismo.” Valor Econômico, 29 out. 2025.

  • UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME (UNODC). Global Report on Cocaine. Vienna: UN, 2023.

  • TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Entrevista em ConJur, 30 mar. 2024.

  • ARRUDA, Welington. “Populismo penal e superencarceramento.” Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 194, 2024.

  • PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: a Nova Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

  • AUSTIN, J. L. How to Do Things with Words. Cambridge: Harvard University Press, 1962.

  • FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

  • RELATÓRIO DE INTELIGÊNCIA DA POLÍCIA FEDERAL. Organizações Criminosas no Brasil: Estrutura e Dinâmica do PCC e CV. Brasília: MJSP, 2023.


 
 
 

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