Minha Palavra do Ano: Inominável
- gleniosabbad
- há 7 dias
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Por Glênio S. Guedes ( advogado )
1. O ritual anual das palavras
Há algo de profundamente civilizatório no gesto de eleger uma “Palavra do Ano”. É um mecanismo simbólico de autoconsciência: ao nomear, tentamos domesticar a realidade; ao escolher uma palavra, buscamos capturar um espírito do tempo — o Zeitgeist — que escorre veloz demais.
Nos últimos anos, porém, esse ritual se tornou menos farol e mais espelho quebrado. Sérgio Rodrigues, em sua coluna na Folha de S. Paulo, lembra que essa tradição anglófona oscilou sempre entre o sério e o pitoresco, mas já iluminou a paisagem social com escolhas de impacto: pegada de carbono, selfie, xenofobia, emergência climática, pós-verdade. Todas essas palavras tinham algo em comum: nomeavam tensões profundas do mundo contemporâneo.
Mas depois, o fio se rompeu.
2. A aceleração que desborda o vocabulário
A partir de 2022, as escolhas começaram a exibir um descompasso sintomático:
2022 – “goblin mode”: um modo anárquico, largado, quase misantrópico;
2023 – “rizz”: gíria digital para carisma;
2024 – “brain rot”: o apodrecimento mental provocado por telas;
2025 – “rage bait”: iscas de indignação que inflam redes sociais;
Cambridge (2025): “parasocial”: relações unilaterais com celebridades e chatbots;
Collins (2025): “vibe coding”: pedir para a IA programar em vez de fazê-lo.
Tudo isso diz algo do presente, mas diz pouco sobre o mundo que realmente importa. São termos enraizados no ecossistema digital — tentativa honesta de nomear uma modernidade que se torna inominável pela própria velocidade.
A linguagem corre atrás, manca, enquanto a realidade se move com a brutalidade de um touro solto em loja de porcelana.
3. A crise da nomeação
O cerne do problema é mais profundo: a linguagem pública perdeu capacidade crítica. As palavras deixaram de transcender o imediato e passaram a orbitar o que é clicável, replicável, algorítmico.
Rodrigues observa que parte da culpa vem da máquina discursiva das big techs, que simula novidade incessante, sem nunca produzir sentido histórico.
O paradoxo da era digital é simples: temos linguagem demais e significado de menos.
É uma inflação de signos que já não correspondem ao mundo. A semiótica sofre uma espécie de curto-circuito: o triângulo de Ogden & Richards — referente, significante e significado — perde sua geometria.
Hoje, o referente (a realidade) move-se com tal violência imprevisível que:
o significante não o alcança,
o significado se dissolve,
e a relação simbólica se quebra.
É o que ocorre quando tentamos nomear, por exemplo:
o colapso democrático dos EUA,
a hegemonia do termo “genocídio” ao descrever Gaza,
o litígio global envolvendo a IA e o workslop, o lixo robótico que já assombra corporações.
Como nomear fenômenos que ainda estão se formando, se desfazendo e se recombinando enquanto os vivemos?
4. Por que minha Palavra do Ano é Inominável
Chego, assim, à minha Palavra do Ano: INOMINÁVEL.
Não é um gesto de desistência, mas de precisão. É exatamente porque o mundo se tornou tão complexo, tão mutável, tão entrópico, que qualquer tentativa de nomeá-lo corre o risco de produzir apenas ruído.
“Inominável” aqui significa:
o excesso de realidade sobre a linguagem,
a erosão do vocabulário diante da hipercomplexidade,
a impossibilidade de síntese em tempos de caos informacional,
o buraco negro semiótico do qual emergem milhões de signos sem referente.
Se em 2016 falávamos em pós-verdade, hoje vivemos a pós-nomeação: a falência da capacidade humana de nomear o que acontece.
Ao declarar “inominável”, reconheço que:
o mundo de 2025 não cabe em uma palavra;
nenhuma palavra consegue iluminar simultaneamente Trump, Gaza, a crise do humanismo, a IA entrópica, a política latino-americana, o colapso ambiental e o desmanche epistêmico global;
a linguagem precisa reaprender a dizer antes de ousar escolher.
5. Conclusão: quando a linguagem falha, o humanismo treme
A crise da Palavra do Ano não é uma anedota lexicológica. É um sintoma civilizacional.
Um humanismo que não consegue mais nomear o mundo que tenta compreender é um humanismo em crise. E essa crise se agrava quando a IA passa a simular toda e qualquer linguagem, realimentando-se ao infinito, transformando o discurso público numa pasta amorfa de signos reciclados.
Daí a pertinência do diagnóstico:em 2025, não há palavra que chegue.
E o que não tem nome, não tem contorno. O que não tem contorno, não tem debate. O que não tem debate, não tem política. E o que não tem política, não tem futuro.
Por isso, e apenas por isso, minha Palavra do Ano é: INOMINÁVEL.


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