Ler faz diferença?
- gleniosabbad
- 15 de out.
- 7 min de leitura
Por que a leitura profunda transformou-se no ato subversivo de nossa época?
O cérebro leitor e a formação da consciência crítica em tempos de fragmentação digital
Por Glênio S. Guedes ( advogado )
Em uma sociedade saturada de estímulos digitais e informações fragmentárias, uma pergunta aparentemente simples ganha complexidade urgente: em que medida o ato de ler — essa prática milenar de interpretar signos em busca de sentido — ainda constitui ferramenta essencial para a formação do pensamento crítico? A resposta a essa questão não é apenas pedagógica, mas profundamente política: ler, hoje, tornou-se um ato de resistência à entropia do pensamento superficial.
1. A leitura como prática de conscientização: o legado freireano
Paulo Freire revolucionou nossa compreensão sobre o ato de ler ao demonstrar que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra.” Essa formulação revela que a alfabetização transcende a mera decodificação de símbolos gráficos: constitui um processo de conscientização política e social. Antes mesmo de reconhecermos letras, já deciframos contextos, relações de poder e estruturas de injustiça social.
Para Freire, o verbo “ler” carrega dimensão transformadora: significa compreender-se como sujeito ativo da própria história, capaz de questionar e modificar a realidade. Por essa razão, alfabetizar não se restringe ao ensino do código escrito — implica formar cidadãos capazes de leitura crítica do mundo. Quando uma pessoa aprende a questionar a própria condição social por meio da palavra escrita, desenvolve aquilo que o educador pernambucano chamava de “consciência crítica”.
Essa perspectiva ganha relevância particular em sociedades que experimentam o crescimento do analfabetismo funcional. Não se trata apenas da incapacidade de decodificar palavras, mas da dificuldade de compreender textos complexos, estabelecer relações causais e desenvolver argumentação própria. O analfabetismo funcional representa, portanto, uma forma de alienação: a pessoa lê, mas não compreende; decodifica, mas não reflete.
2. As bases neurológicas da transformação: o que a ciência revela sobre o cérebro leitor
A neurociência contemporânea oferece fundamentos biológicos para as intuições pedagógicas de Freire. Maryanne Wolf, em suas pesquisas sobre plasticidade cerebral, demonstra que nenhum ser humano nasce programado para ler. A capacidade leitora resulta de um extraordinário processo de adaptação neuronal que literalmente remodela o cérebro humano.
Durante o aprendizado da leitura, nosso sistema nervoso realiza uma impressionante “reciclagem cortical”. Uma região específica do córtex visual — a área occipito-temporal ventral esquerda — gradualmente especializa-se no reconhecimento de palavras escritas. Essa área, que originalmente processava apenas objetos e rostos, desenvolve a capacidade de identificar letras, sílabas e palavras inteiras em frações de segundo.
O processo envolve duas rotas cognitivas complementares. A via fonológica converte grafemas em fonemas, permitindo-nos “ouvir” mentalmente as palavras que lemos — mecanismo fundamental para decodificar termos desconhecidos. Paralelamente, a via lexical permite acesso direto ao significado, dispensando a mediação sonora para palavras familiares. Um leitor proficiente coordena ambas as vias automaticamente, criando uma verdadeira sinfonia neurológica a cada página percorrida.
Essa transformação cerebral possui implicações profundas. Wolf argumenta que a leitura profunda — aquela praticada em livros completos, sem interrupções digitais — desenvolve circuitos neurais específicos para empatia, reflexão e pensamento analítico. Esses mesmos circuitos vêm sendo corroídos pela fragmentação digital característica de nossa época.
3. A construção ativa do sentido: contribuições da linguística cognitiva
Angela Kleiman, pioneira nos estudos brasileiros de leitura, oferece uma ponte teórica essencial entre as descobertas neurocientíficas e a prática pedagógica. Suas pesquisas demonstram que ler constitui processo cognitivo complexo, no qual o leitor constrói ativamente o sentido textual por meio da interação entre conhecimento prévio, estratégias metacognitivas e pistas linguísticas oferecidas pelo autor.
A metáfora do “leitor como recipiente” — aquele que simplesmente recebe informações prontas — revela-se inadequada. O processo real de compreensão leitora assemelha-se mais a uma conversa: o leitor formula hipóteses, confirma ou refuta expectativas, realiza inferências e estabelece conexões que transcendem o texto explícito. Quando lemos uma frase como “João fechou o livro e suspirou”, automaticamente inferimos cansaço, frustração ou alívio, embora essas emoções não estejam literalmente descritas.
Essa construção ativa do sentido explica por que textos complexos exigem leitores experientes. A compreensão profunda demanda repertório cultural amplo, familiaridade com convenções discursivas e capacidade de gerenciar múltiplas informações simultaneamente. Por essa razão, formar leitores competentes constitui tarefa que transcende a alfabetização inicial, estendendo-se por toda a trajetória educacional.
Como observa Kleiman, “recipientes não compreendem” — isto é, o leitor não é um vaso que se enche, mas um sujeito que interage ativamente com o texto. A metacognição — nossa capacidade de monitorar e controlar os próprios processos mentais — emerge como elemento crucial nesse cenário. Leitores proficientes desenvolvem consciência sobre suas estratégias de leitura: sabem quando diminuir o ritmo em passagens difíceis, quando retomar trechos anteriores para esclarecer referências, quando buscar informações complementares.
4. Leitura como resistência democrática: a urgência política da formação leitora
A convergência entre neurociência e pedagogia crítica ilumina uma questão política fundamental que ganha contornos cada vez mais urgentes. Como sintetiza Natalia Beauty em sua análise “Ler é resistência e precisamos ensinar isso desde cedo” (Folha de S.Paulo, 14 out. 2025, 11h06), “a formação de leitores não é detalhe de política pública: é o alicerce de qualquer nação que deseja pensar por conta própria.”
Beauty articula uma tese provocativa, mas empiricamente sustentada: o esvaziamento sistemático da leitura explica, em grande medida, o sucesso contemporâneo dos discursos simplistas, das narrativas conspiratórias e dos líderes populistas. “Políticos autoritários odeiam leitores”, argumenta a colunista, “porque leitor duvida, questiona e desmonta narrativas prontas.”
Essa observação encontra respaldo nas descobertas neurocientíficas. A leitura de textos longos e complexos desenvolve habilidades cognitivas específicas: capacidade de sustentação da atenção, tolerância à ambiguidade, pensamento hipotético-dedutivo e análise crítica de argumentos. Essas são precisamente as competências necessárias para avaliar propostas políticas, identificar falácias retóricas e construir posições fundamentadas sobre questões públicas.
O fenômeno das fake news e da polarização política extrema encontra terreno fértil justamente em contextos de letramento limitado. Quando as pessoas não desenvolvem competências para análise textual crítica, tornam-se mais suscetíveis a narrativas simplistas, teorias conspiratórias e manipulação emocional. A leitura superficial, característica das redes sociais, favorece reações impulsivas em detrimento da reflexão ponderada.
Como conclui Beauty, cultivar leitores é formar pensadores — “e essa talvez seja a única rebelião que ainda vale a pena.” A manipulação política se alimenta do vazio cognitivo: onde faltam livros, proliferam certezas absolutas.
5. O desafio da iconoclastia intelectual: ler contra as próprias certezas
Contudo, a verdadeira força transformadora da leitura reside em sua capacidade de nos confrontar com perspectivas divergentes das nossas próprias convicções. Essa dimensão ganha particular relevância quando consideramos o alerta de Hélio Schwartsman em sua coluna “Ideias Sagradas” (Folha de S.Paulo, 14 out. 2025, 15h30): toda sociedade precisa de “um pouco de iconoclastia” para manter-se intelectualmente saudável.
Schwartsman adverte que, quando canonizamos nossas crenças e as blindamos à crítica, o pensamento coletivo se fossiliza. Toda comunidade desenvolve, ao longo do tempo, um conjunto de “ideias sagradas” — pressupostos culturais que se tornam inquestionáveis. A leitura diversificada funciona como força iconoclasta natural, obrigando-nos a examinar criticamente essas certezas coletivas.
Ler, ao contrário da adesão acrítica, nos obriga a conviver produtivamente com o dissenso. O verdadeiro leitor é aquele que aceita ler “contra si mesmo”, que tolera o risco da mudança, a possibilidade de revisão de suas crenças mais arraigadas. A leitura ensina que nenhuma convicção é eterna — e é justamente aí que reside sua força humanizadora.
Esse processo de “leitura contra si mesmo” constitui exercício de maturidade democrática. Em uma sociedade pluralista, a capacidade de compreender e dialogar com posições divergentes — sem necessariamente concordar com elas — torna-se competência fundamental. Como observa Schwartsman, a iconoclastia intelectual não visa destruir por destruir, mas manter viva a capacidade coletiva de revisão e aperfeiçoamento das ideias.
6. A leitura como cultivo do silêncio interior
Por fim, a leitura oferece algo cada vez mais raro em nossa época: a experiência do silêncio contemplativo. Em contraste com a velocidade frenética da comunicação digital, a leitura de livros completos impõe ritmo diferente, no qual pensamento e emoção podem amadurecer gradualmente.
O ato de ler silenciosamente permite que os complexos processos neurológicos de reconhecimento e compreensão ocorram sem interferência externa. Nesse estado de concentração sustentada, estabelecemos conexões cognitivas mais profundas e desenvolvemos aquilo que Wolf denomina “vida contemplativa” — a capacidade de reflexão prolongada e análise nuanceada.
O processo de leitura, especialmente a silenciosa, revela-se como verdadeira convergência entre corpo e pensamento. As operações centrais de reconhecimento e compreensão ocorrem fora do controle consciente, em frações de segundo, ativando redes complexas que integram som, imagem e significado. Nesse instante de convergência neurológica, mente e experiência se fundem numa síntese única.
Conclusão: o silêncio que resiste
A pergunta inicial — “Ler faz diferença?” — encontra resposta inequívoca na confluência entre neurociência, pedagogia crítica e análise política contemporânea. A leitura transforma não apenas vocabulário e sinapses, mas fundamentalmente reconstitui nossa humanidade em sua dimensão mais crítica e resistente.
Freire chamaria esse fenômeno de “conscientização”; Wolf, de “leitura profunda”; Kleiman, de “metacognição crítica”; Beauty, de “resistência democrática”; e Schwartsman, de “iconoclastia saudável”. Trata-se de facetas complementares de um mesmo processo: o desenvolvimento de uma mente capaz de resistir à superficialidade, questionar narrativas dominantes e construir compreensões próprias sobre o mundo.
Em um mundo que fala demais e escuta pouco, o leitor cultiva a arte da escuta atenta. Enquanto tudo se acelera digitalmente, a leitura oferece desaceleração reflexiva necessária. É nesse silêncio interior — onde pensamento e experiência se encontram — que reside a verdadeira diferença: a formação de consciências capazes de resistir à banalização da existência humana.
A leitura não é simplesmente uma habilidade técnica, mas uma prática de liberdade que nos permite pensar por conta própria. E essa permanece, como bem observam nossos analistas contemporâneos, a única “revolução silenciosa” que ainda vale a pena empreender.
Referências
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1981.
WOLF, Maryanne. O cérebro no mundo digital: os desafios da leitura na nossa era. São Paulo: Contexto, 2019.
DEHAENE, Stanislas. Os neurônios da leitura: como a ciência explica a nossa capacidade de ler. Porto Alegre: Penso, 2012.
KLEIMAN, Angela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas: Pontes, 2004.
Beauty, Natalia. “Ler é resistência e precisamos ensinar isso desde cedo.” Folha de S.Paulo, 14 out. 2025.
SCHWARTSMAN, Hélio. “Ideias Sagradas.” Folha de S.Paulo, 14 out. 2025.
SOARES, Magda. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2003.


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