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Entre o intraduzível e o jurídico: Barbara Cassin, o “Vocabulaire européen des philosophies” e o verbete Law/Right

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    gleniosabbad
  • 28 de out.
  • 8 min de leitura

Por Glênio S Guedes ( advogado )


Resumo: O presente artigo examina o escopo inicial do Vocabulaire européen des philosophies. Dictionnaire des intraduisibles, organizado por Barbara Cassin, explorando sua proposta de pensar a filosofia a partir da pluralidade linguística. Em seguida, analisa-se a edição brasileira — Dicionário dos Intraduzíveis — como um gesto de ampliação conceitual e geopolítica do projeto original. Por fim, dedica-se uma leitura crítica ao verbete Law/Right, de Philippe Raynaud, que exemplifica a intraduzibilidade do jurídico entre tradições linguísticas e filosóficas distintas. Argumenta-se que o “intraduzível”, longe de ser uma falha, constitui o próprio espaço de criação do sentido filosófico e jurídico.


Palavras-chave: Barbara Cassin; intraduzível; filosofia da linguagem; tradução; direito comparado; law/right.


1. Introdução: a Babel filosófica como projeto


Em 2004, Barbara Cassin publicou, sob a chancela do CNRS francês, uma obra singular: o Vocabulaire européen des philosophies. Dictionnaire des intraduisibles. Longe de se tratar de um dicionário no sentido tradicional — repositório de equivalências lexicais —, o projeto propunha uma cartografia das diferenças conceituais entre as línguas da filosofia europeia.

A ideia motriz, como Cassin explicita na apresentação, era pensar a filosofia não como uma língua universal (grega, latina, francesa ou, hoje, inglesa), mas como um conjunto de regimes linguísticos de pensamento, cada qual portador de suas opacidades e resistências. Nesse horizonte, o “intraduzível” não é o que impede a comunicação, mas o que obriga a traduzir — e, ao obrigar, faz pensar.

“O intraduzível não é aquilo que não se traduz, mas o que nunca deixa de se traduzir.”(Barbara Cassin, Apresentação da edição francesa, 2004)

Assim, o Vocabulaire pode ser lido como uma resposta indireta à crescente hegemonia do inglês como língua da filosofia e da ciência, defendendo a pluralidade linguística como condição do pensamento e da cidadania europeia.


2. O escopo filosófico e político do projeto


A ambição de Cassin é dupla: filosófica e política. Filosófica, porque redefine o campo da filosofia da linguagem, deslocando o foco da “universalidade dos conceitos” para a “singularidade dos modos de dizer”. Política, porque propõe um novo modelo de Europa — não o da moeda única, mas o da diversidade linguística compartilhada.

Cada verbete do Vocabulaire foi concebido como um microensaio comparativo, redigido por especialistas que exploram um termo problemático entre línguas — por exemplo, logos, subject, Geist, mind, raison, droit. O objetivo não é fixar equivalentes, mas mostrar o que se perde e o que se cria ao traduzir.

Nesse sentido, o Vocabulaire faz eco a uma tradição hermenêutica que inclui Humboldt, Gadamer e Ricoeur, mas vai além: instaura uma metodologia de leitura intercultural, em que o intraduzível se torna ferramenta epistemológica. Traduzir é, aqui, uma forma de hospitalidade linguística, um gesto ético.


3. A edição brasileira: uma nova geografia do intraduzível


A edição brasileira, publicada sob o título Dicionário dos Intraduzíveis – Línguas (2018), coordenada por Fernando Santoro, pode ser entendida como uma transcriação. Ao transportar o projeto para o português, os editores brasileiros enfrentam uma tarefa duplamente intraduzível: verter os conceitos filosóficos europeus e, simultaneamente, inscrever a língua portuguesa — e sua história colonial, jurídica e cultural — no mapa do pensamento filosófico mundial.

Essa edição, lançada pela Editora 34, adota um tom didático e político, apresentando-se como ferramenta de ensino e reflexão sobre a linguagem, a tradução e a filosofia. Ela inclui dois grandes volumes:


  • Línguas, que introduz os fundamentos teóricos e apresenta verbetes sobre os idiomas e as tradições;

  • Direito, Ética e Política, publicado em 2021, que amplia o foco para as palavras do poder e da convivência.


Ao falar de “intraduzíveis” em português, Cassin e Santoro abrem espaço para questões próprias do pensamento luso-brasileiro: o lugar da linguagem jurídica do império e da colônia, o papel da tradução nas práticas jurídicas e filosóficas do Atlântico Sul, e a herança latina e cristã que modelou o conceito de “direito”.


4. O verbete Law/Right: entre o ius e o lex


O verbete Law/Right, redigido por Philippe Raynaud, situa-se no cerne do problema que o Vocabulaire busca iluminar: como pensar o “direito” em diferentes regimes linguísticos e jurídicos.

Raynaud parte de uma distinção clássica: em latim, lex designa a lei positiva, promulgada, enquanto ius remete ao justo, à medida do direito enquanto equidade. Essa tensão atravessa toda a tradição jurídica europeia. O termo francês droit e o português direito herdam ambiguamente ambas as acepções: são ao mesmo tempo sistema normativo e ideal de justiça.

Já o inglês distingue dois vocábulos — law e right —, cuja articulação reflete, mais do que cria, uma forma distinta de pensar o jurídico: law refere-se à ordem normativa (a lei), enquanto right indica a faculdade individual.

Raynaud mostra que essa diferença não é apenas semântica, mas histórica e institucional: a língua inglesa, sob a influência do common law, concebe o direito a partir da experiência judicial e do precedente, ao passo que o francês e o português derivam-no do modelo romano e legislativo.

Essa divergência faz do par Law/Right um dos exemplos mais produtivos de “intraduzível” jurídico:


  • O francês droit e o português direito fundem o sistema e o sujeito;

  • O inglês separa-os, projetando um conceito mais pragmático e individualizado. Traduzir rule of law como “Estado de Direito” é, pois, um gesto interpretativo, e não literal.


4.1. O par Law/Right e o pensamento da Common Law


A distinção entre law e right — ausente nas línguas latinas — não é um mero acidente lexical: ela reflete uma forma de racionalidade jurídica própria da tradição anglo-saxã, profundamente enraizada na história e na pragmática do common law.

Enquanto o francês droit e o português direito fundem o sistema normativo e a prerrogativa subjetiva numa única palavra, o inglês estabelece uma bipartição conceitual:


  • law designa o conjunto das regras que ordenam a vida social;

  • right indica o que é “devido” ou “justo” a um indivíduo em determinada circunstância.


Essa clivagem terminológica traduz o modo como a common law pensa o jurídico por meio da experiência, e não da dedução racional. A língua inglesa, ao distinguir law e right, faz existir uma ordem jurídica empirista, plural e casuística, em que a norma nasce do caso, e não o contrário.

Historicamente, law deriva do inglês antigo lagu (“colocar, dispor”), o que sugere uma concepção institucional e histórica da lei — algo que se põe e se confirma pela prática reiterada. No common law, a autoridade da norma não provém do legislador, mas da força do precedente (stare decisis). Cada decisão judicial torna-se um argumento de autoridade, um tijolo na construção coletiva da legalidade.

Essa estrutura confere à law uma natureza narrativa e retórica: o juiz não aplica uma norma codificada, mas raciocina por analogia. A verdade jurídica é persuasiva, não dedutiva; nasce do discurso, não da abstração. Como observa Maitland (1909, p. 6), a common law se apresenta menos como uma ciência sistemática do direito do que como “uma arte prática de decidir” — parafraseando seu espírito, e não citando literalmente.

Já o termo right, oriundo do latim rectus, carrega um sentido ético e moral, anterior à positivação da norma. Right é o que é “certo”, não necessariamente o que está “legal”. Essa etimologia revela o caráter subjetivo e moral do direito na tradição inglesa: o right é uma faculdade do indivíduo, uma reivindicação legítima perante os outros e perante o Estado. A filosofia política liberal, de Hobbes a Locke, e depois de Bentham a Mill, desenvolve-se a partir dessa noção, em que o direito é inseparável da liberdade.

O par law/right pode ser lido como uma dialética constitutiva entre ordem e liberdade. Na common law, o caso individual desafia a regra, e a regra se reconfigura diante do caso. Ronald Dworkin, em Taking Rights Seriously (1977), reformula essa ideia ao afirmar que “o direito não é um sistema de regras, mas uma prática interpretativa que toma os direitos a sério”.

Do ponto de vista filosófico, essa estrutura reflete um nominalismo jurídico, no sentido de que não há “ideia universal de justiça”, mas práticas localizadas de correção. O direito, em inglês, é uma language game — um jogo de linguagem, no sentido wittgensteiniano, cujas regras emergem do uso.

Essa visão é reforçada pelo pragmatismo americano (Holmes Jr., Cardozo, Llewellyn): “o direito é o que os tribunais fazem efetivamente”. A jurisprudência é o laboratório do justo; o precedente, sua prova empírica. Hart, em The Concept of Law (1961), fala em open texture of law — “textura aberta da lei” —, reconhecendo que os significados jurídicos são sempre contextuais e dependentes do uso social da linguagem.

Traduzir law/right para o português e o francês é enfrentar uma dificuldade ontológica: como verter uma estrutura conceitual bifurcada para uma língua monista? Ao traduzir rule of law por “Estado de Direito”, perde-se o caráter experiencial e ético da expressão inglesa: “rule” não é “Estado”, e law não é apenas “Direito”.

Cassin observa que esse tipo de descompasso é o que funda a própria noção de intraduzível: não o que é impossível de traduzir, mas o que exige tradução contínua, pois as palavras “não cobrem exatamente o mesmo mundo”. Assim, o par law/right é um laboratório de pensamento filosófico-jurídico — um lugar em que a diferença linguística se torna método de comparação.


5. O intraduzível como método do direito comparado


O verbete de Raynaud não é apenas um exercício filológico; é uma epistemologia do direito comparado. Ele mostra que as categorias jurídicas não são universais, mas históricas, e que a tradução entre sistemas (romano-germânico e anglo-saxão) exige um trabalho hermenêutico.

Ao insistir no caráter intraduzível de certos termos, Cassin e seus colaboradores não propõem o relativismo, mas um pluralismo metódico: compreender que o direito é um modo de dizer o justo, e que esse modo se articula linguisticamente.

A consequência filosófica é decisiva: o jurista, como o tradutor, deve habitar o entre-línguas, reconhecer o caráter situado de suas categorias, e saber que cada termo jurídico é também uma memória de um mundo — lex, ius, nomos, law, droit, derecho, direito.

Esse ponto aproxima o Vocabulaire de uma nova filosofia do direito: aquela que não busca fundamentos universais, mas traduções críticas entre tradições jurídicas.


6. Do intraduzível ao diálogo das línguas jurídicas


A noção de intraduzível tem especial relevância para o Brasil, país cuja língua jurídica é produto de múltiplas camadas — latina, portuguesa, indígena, africana, e hoje anglo-global. O contato com as categorias inglesas (accountability, compliance, due diligence) expõe, na prática, a tensão entre sistemas jurídicos e linguagens normativas.

Nesse contexto, o Dicionário dos Intraduzíveis oferece não apenas uma ferramenta filológica, mas uma forma de crítica cultural do direito: ele permite perceber como cada termo transporta consigo uma visão do mundo jurídico, um ethos institucional e uma forma de racionalidade.

Traduzir o law como “lei” e o right como “direito” é, portanto, uma escolha política. A tradução, como queria Cassin, é um ato de cidadania linguística.


7. Conclusão: o intraduzível como resistência e criação


O projeto de Barbara Cassin — e, em particular, o verbete Law/Right — demonstra que traduzir é filosofar. O intraduzível, longe de ser um obstáculo, é a própria condição do pensamento plural.

No campo jurídico, essa lição é ainda mais urgente: compreender o direito como fenômeno linguístico significa reconhecer que não há “universal jurídico” fora das línguas que o enunciam. Cada tradição jurídica é, no fundo, uma tradução do justo.

Assim, o Vocabulaire européen des philosophies não é apenas um monumento à erudição, mas um ato político de resistência à homogeneização cultural e um convite ao diálogo entre as línguas do direito. No intraduzível, Cassin nos ensina, habita a possibilidade do comum.


Referências bibliográficas


CASSIN, Barbara (org.). Vocabulaire européen des philosophies. Dictionnaire des intraduisibles. Paris: Seuil/Le Robert, 2004.

CASSIN, Barbara (org.). Dicionário dos Intraduzíveis – Línguas. Coord. Fernando Santoro. São Paulo: Editora 34, 2018.CASSIN, Barbara (org.). Dicionário dos Intraduzíveis – Direito, Ética e Política. Coord. Fernando Santoro. São Paulo: Editora 34, 2021.

CASSIN, Barbara. Éloge de la traduction. Compliquer l’universel. Paris: Fayard, 2016.RAYNAUD, Philippe. Law/Right. In: CASSIN, Barbara (org.). Vocabulaire européen des philosophies. Paris: Seuil/Le Robert, 2004.

RICOEUR, Paul. Sur la traduction. Paris: Bayard, 2004.

HUMBOLDT, Wilhelm von. Über die Verschiedenheit des menschlichen Sprachbaues. Berlin, 1836.

MAITLAND, F. W. The Forms of Action at Common Law. Cambridge: CUP, 1909.

DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977.HART, H. L. A. The Concept of Law. Oxford: Clarendon Press, 1961.HOLMES JR., Oliver Wendell. The Common Law. Boston: Little, Brown, 1881.


 
 
 

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