Da Propedêutica Jurídica
- gleniosabbad
- 30 de set.
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Por Glênio S Guedes ( advogado )
Resumo
O presente artigo discute a importância da propedêutica jurídica como disciplina formativa na educação do jurista, a partir da leitura da obra À la découverte du droit, de Julien Dubarry (2025), em especial do item 399, que questiona a autonomia do ensino propedêutico. Em diálogo com Miguel Reale e sua concepção da Introdução ao Estudo do Direito como ciência propedêutica, explora-se o significado da propedêutica como preparação epistemológica, lógica e filosófica para a vida jurídica. Ao final, analisam-se os dez conselhos de Dubarry ao aprendiz de jurista, ressaltando seu valor pedagógico e ético.
Palavras-chave: Propedêutica jurídica. Introdução ao Estudo do Direito. Julien Dubarry. Miguel Reale. Formação do jurista.
Pro-pe-deu-ti-ca...
Destaco as sílabas, como quem degusta fonemas. Para mim, é uma das palavras mais belas dos idiomas que a herdaram do grego. Polissilábica, eumórfica, eufônica. Ao pronunciá-la, ecoa quase como música. Inspirou-me, inclusive, a criar um neologismo: “semioplenipotenciária”. Explico: semio, de semiose, produção de sentido; e plenipotenciária, porque plena de potência, poderosa em seu alcance, cheia de significados. Eis porque a propedêutica é complexa: ela é, ao mesmo tempo, caminho de iniciação e potência de sentidos.
Mas por que essa palavra — propedêutica — é tão importante para o futuro jurista?
A Propedêutica em Dubarry
Li, de cabo a rabo, o livro de Julien Dubarry, À la découverte du droit (Lefebvre Dalloz, 2025). Confesso: encontrei nele não apenas um manual introdutório, mas um projeto pedagógico inspirador. À página 558, o autor se pergunta: “La propédeutique juridique: un enseignement autonome?”
A questão é simples e profunda: não seria a propedêutica uma disciplina própria, e não apenas um apêndice difuso das matérias iniciais? Para Dubarry, mais do que adaptação ao mundo universitário, ela é porta de entrada: familiarização com conceitos, com a linguagem do direito, com o raciocínio jurídico. Ele fala de propedêutica como experiência cultural, como acolhimento intelectual que ajuda a compreender o ethos do jurista.
A Propedêutica no Brasil segundo Reale
A leitura de Dubarry remeteu-me imediatamente a Miguel Reale. Em suas Lições Preliminares de Direito (27ª ed., Saraiva, 2003), páginas 10-11, Reale ensina que a Introdução ao Estudo do Direito é, desde já, uma ciência propedêutica. Mas aqui Reale acrescenta um dado, a meu juízo, de mestre : é uma ¨ciência propedêutica¨, na qual o elemento de arte é decisivo. Quem se atreve a escrever um livro de Introdução ao Estudo do Direito compõe artisticamente dados de diferentes ramos do saber, imprimindo-lhes um endereço que é a razão de sua unidade. Em suma, diz Reale, é um sistema de conhecimentos de fontes múltiplas, com integração e complementaridade.
No Brasil, a IED sempre foi vista como disciplina eclética, enciclopédica e propedêutica. Não um simples manual, mas espaço de convergência de saberes — filosofia, sociologia, lógica, história — e ciência que prepara o espírito do estudante para compreender o fenômeno jurídico em sua totalidade.
Enquanto Dubarry apresenta a propedêutica como disciplina de acolhimento e descoberta, Reale a define como ciência de base, que articula filosofia, epistemologia e história do direito. São contextos distintos — a universidade francesa e a brasileira — mas ambos partilham a convicção de que sem propedêutica não há jurista pleno. E ambos, friso aqui, em tempo e espaço distintos, conceberam seus livros com arte, artisticamente!
O que é Propedêutica Jurídica?
Propedêutica vem do grego propaideutikós: ensino preliminar, preparação para o conhecimento. No direito, designa o conjunto de estudos que estruturam o pensamento jurídico e fornecem instrumentos para interpretar normas de modo lógico, crítico e fundamentado.
Ela abarca três grandes áreas:
Lógica jurídica: garante coerência argumentativa, evita falácias e estrutura o raciocínio.
Epistemologia do direito: indaga sobre a validade, a origem e os limites do conhecimento jurídico.
Filosofia do direito: reflete sobre justiça, legitimidade e valores que sustentam as normas.
Sem esses fundamentos, o estudante corre o risco de se tornar mero “decorador de artigos”, incapaz de compreender a estrutura profunda do direito ou de construir argumentos sólidos.
Os Dez Conselhos de Dubarry – Comentados e Ilustrados
1. Nunca esquecer os fundamentos
Qualquer profissão se apoia em bases sólidas. Para Dubarry, os conhecimentos adquiridos nos primeiros anos constituem a “caixa de ferramentas” (boîte à outils) da vida ativa de um profissional. Para o jurista, essas ferramentas são conceitos estruturantes — norma, fonte, validade, eficácia, sanção — que jamais podem ser relegados ao esquecimento.A metáfora musical é eloquente: os fundamentos são para o jurista o que as escalas são para o concertista. Mesmo o pianista mais renomado não dispensa os exercícios básicos; da mesma forma, o jurista, por mais experiente, não pode abandonar a técnica elementar da ciência jurídica.
2. Pensar por si mesmo
Dubarry ecoa o lema kantiano sapere aude: ousa pensar por conta própria. No direito, a tentação do “argumento de autoridade” é constante — citar doutrina ou jurisprudência como se fossem dogmas intocáveis. Mas o jurista deve evitar ser apenas um repetidor.Aqui, a imagem pode ser a do navegador: o mapa ajuda, mas o leme é pessoal. Doutrina e jurisprudência são mapas; cabe ao jurista conduzir sua rota, com julgamento autônomo e reflexão crítica.
3. Reconhecer que sempre há alguém melhor
A humildade intelectual é condição de progresso. Dubarry recorda que não importa o quão avançado o profissional esteja, sempre haverá alguém com mais domínio em determinado campo.
A metáfora é a da montanha: cada cume conquistado revela outro mais alto ao fundo. O jurista que aceita essa dinâmica aprende continuamente e evita a soberba que paralisa o espírito.
4. Não se deixar vencer pela rotina
O risco do direito é virar burocracia: petições padronizadas, decisões repetitivas, pareceres protocolares. Dubarry convida a cultivar a curiosidade e a criatividade.A imagem aqui é a do jardineiro: quem não poda, rega e observa, deixa o jardim morrer na monotonia. Assim também o jurista: precisa renovar-se, abrir caminhos, experimentar novas leituras e práticas.
5. Ler muito e saber evadir-se
Não basta ler manuais jurídicos. Dubarry insiste na importância de ler literatura, história, filosofia, poesia. É no contato com narrativas, símbolos e metáforas que o jurista amplia sua sensibilidade.
A metáfora é a da respiração: o direito é o ar técnico; a literatura é o oxigênio vital. Sem evasão, o jurista sufoca na aridez normativa.
6. Adaptar a expressão ao contexto
A linguagem jurídica deve ser plástica. O mesmo argumento não pode ser apresentado do mesmo modo ao juiz, ao cliente ou ao colega. Dubarry retoma a tradição retórica de Cícero: adequar o discurso ao auditório.
A metáfora é a da música de câmara: o instrumento se ajusta à harmonia do conjunto. O jurista, ao falar ou escrever, deve modular seu tom conforme o público e a ocasião.
7. Dominar outra língua e outro sistema jurídico
Dubarry mostra que o jurista fechado em seu idioma e sistema corre o risco do provincianismo. Conhecer outra língua e outro ordenamento é abrir horizontes, comparar, relativizar.
A imagem é a da janela: aprender outra língua é abrir a janela de uma nova casa. Para o jurista, isso significa enxergar o direito de fora, perceber alternativas e enriquecer sua visão crítica.
8. Nunca denegrir qualquer causa
Nenhum caso é indigno. Mesmo a causa aparentemente “menor” ou “perdida” merece respeito e atenção, pois carrega uma dimensão humana.
A metáfora é a do mosaico: cada pequena pedra, mesmo a mais escura, é essencial para o desenho do conjunto. Do mesmo modo, cada litígio revela uma parte do tecido social e exige consideração.
9. Não ver na carreira um fim em si mesma
A profissão não deve ser idolatrada como mera fonte de status ou renda. Dubarry lembra que o direito é meio de vida, mas sobretudo meio de justiça.
A metáfora é a da estrada: a carreira é o caminho, não a chegada. O jurista que absolutiza a carreira esquece a finalidade maior: servir à sociedade e promover justiça.
10. Ser vigilante e divertir-se
Dubarry encerra com equilíbrio: vigilância crítica contra abusos, mas também alegria no exercício da profissão. O jurista não deve ser carrancudo; deve cultivar prazer no pensar, no escrever, no debater.
A metáfora é a do jogo: o direito é coisa séria, mas também jogo de inteligência. E como todo jogo, exige regras, mas pede entusiasmo.
Conclusão
A palavra propedêutica não é apenas bela em sua sonoridade. É bela em sua missão: preparar, formar, inspirar. Dubarry e Reale, em diálogo implícito, mostram que a propedêutica não é luxo acadêmico, mas fundamento da formação jurídica.
Ela articula lógica, epistemologia e filosofia, molda o pensamento crítico e oferece ao estudante instrumentos para enfrentar o direito em sua densidade. E, como Dubarry nos lembra com seus dez conselhos, ela é também ética de vida: cultivar fundamentos, autonomia, humildade, criatividade, cultura, retórica, abertura, respeito, serviço e alegria.
No fundo, é a propedêutica que permite ao estudante não ser mero repetidor de códigos, mas semioplenipotenciário: capaz de produzir sentidos, de pensar criticamente, de exercer o direito como cultura, linguagem e vida.
Referências
DUBARRY, Julien. À la découverte du droit. Paris: Lefebvre Dalloz, 2025.
REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.


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