COINTELIGÊNCIA, RETÓRICA E CONTEXTO: O JURISTA COMO ORADOR E ARQUITETO NA ERA DA IA
- gleniosabbad
- 26 de set.
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Por Glênio S Guedes ( advogado )
RESUMO
Este artigo analisa a complexa interação entre humanos e sistemas de inteligência artificial (IA) generativa no Direito, partindo do conceito de "cointeligência" de Ethan Mollick. A reflexão avança para enquadrar a construção de prompts como uma nova retórica processual, fundamentada na teoria da argumentação de Chaïm Perelman e na tríade clássica de Aristóteles (ethos, logos, pathos). Contudo, a análise transcende a retórica do comando para introduzir a "engenharia de contexto" como a competência essencial do futuro, posicionando o jurista não apenas como um orador, mas como um arquiteto do ambiente informacional da IA. Esta nova prática é situada no horizonte sistêmico da "Justiça 5.0" e do "devido processo tecnológico" (Dierle Nunes), e é temperada por uma consciência crítica sobre os riscos éticos (Ricardo Pizarro), o capitalismo de vigilância (Shoshana Zuboff) e a psicopolítica (Byung-Chul Han). Conclui-se que a soberania do jurista na era digital exige uma trindade de competências: a maestria da retórica, o domínio da arquitetura da informação e uma inabalável vigilância ética.
Palavras-chave: Inteligência Artificial Generativa; Cointeligência; Retórica Processual; Engenharia de Contexto; Arquitetura da Informação; Ética Digital; Justiça 5.0.
ABSTRACT
This article analyzes the complex interaction between humans and generative artificial intelligence (AI) systems in Law, starting from Ethan Mollick's concept of "co-intelligence." The reflection moves forward to frame the construction of prompts as a new procedural rhetoric, grounded in Chaïm Perelman's argumentation theory and Aristotle's classical triad (ethos, logos, pathos). However, the analysis transcends the rhetoric of the command to introduce "context engineering" as the essential future competency, positioning the jurist not only as an orator but as an architect of the AI's informational environment. This new practice is situated within the systemic horizon of "Justice 5.0" and "technological due process" (Dierle Nunes), and is tempered by a critical awareness of ethical risks (Ricardo Pizarro), surveillance capitalism (Shoshana Zuboff), and psychopolitics (Byung-Chul Han). It concludes that the sovereignty of the jurist in the digital age requires a trinity of competencies: mastery of rhetoric, command of information architecture, and unwavering ethical vigilance.
Keywords: Generative Artificial Intelligence; Co-intelligence; Procedural Rhetoric; Context Engineering; Information Architecture; Digital Ethics; Justice 5.0.
1. INTRODUÇÃO
A consolidação de modelos de Inteligência Artificial (IA) generativa no cotidiano jurídico representa mais do que uma inovação instrumental; ela instaura uma profunda transformação epistêmica. A forma como pesquisamos, redigimos e pensamos o Direito está sendo redefinida. Neste cenário, o conceito de "cointeligência" de Ethan Mollick (2024) surge como um guia para uma colaboração sinérgica e crítica entre o intelecto humano e a capacidade computacional da máquina.
Este artigo parte dessa ética prática para aprofundar a reflexão em camadas sucessivas de complexidade. Inicialmente, explora-se como a interação com a IA, materializada no ato de construir um prompt, transcende o mero comando técnico para se configurar como um sofisticado ato retórico. Apoiando-se na tese de Omar A. Cárdenas Caycedo (2025), mobiliza-se o arcabouço da Nova Retórica de Chaïm Perelman e a tríade clássica de Aristóteles para demonstrar como o jurista se torna um orador perante um novo tipo de auditório.
Em um segundo momento, a análise avança para além da retórica da pergunta, introduzindo o conceito emergente de engenharia de contexto. Argumenta-se que a competência do futuro não reside apenas na arte de perguntar, mas na ciência de projetar o ambiente informacional no qual a IA opera. O jurista evolui de orador para arquiteto da informação.
Finalmente, esta nova prática retórica e arquitetônica é situada no quadro institucional da transição para uma Justiça 5.0 (NUNES, 2024) e confrontada com uma necessária consciência crítica, que articula as advertências de Shoshana Zuboff (2019) e Byung-Chul Han (2019) com os riscos éticos processuais concretos sistematizados por Ricardo Pizarro (2025). O percurso proposto visa demonstrar que a era da IA exige do profissional do Direito uma soberania tripla: retórica, arquitetônica e ética.
2. A COINTELIGÊNCIA E A PRÁTICA JURÍDICA NA ERA DA IA
Ethan Mollick (2024) oferece um ponto de partida pragmático para a interação humano-máquina, propondo uma ética prática para a cointeligência. A ideia central é adotar uma postura de colaboração crítica, afastando-se dos extremos da tecnofobia e da tecnofilia. Suas regras, adaptadas ao contexto jurídico, são:
Trate a IA como um estagiário: Um colaborador brilhante, veloz e multifacetado, mas que não possui discernimento, responsabilidade ou compromisso com a verdade fática. A autoria final e a responsabilidade ética e técnica são, inegociável e integralmente, do jurista.
Seja o gerente: O profissional deve dirigir o fluxo de trabalho, fornecendo contexto detalhado, dividindo tarefas complexas em etapas lógicas e iterando sobre os resultados para refinar a qualidade.
Use a IA para atividades em que você é fraco: A máquina pode compensar dificuldades humanas, como a organização de grandes volumes de dados ou a superação do "bloqueio de escritor", liberando o tempo do jurista para atividades de maior valor agregado.
Converse com a IA: A interação deve ser um diálogo socrático. Questionar a IA sobre suas fontes, pedir que defenda um ponto de vista oposto ou que explicite seu "raciocínio" são técnicas que melhoram a qualidade do resultado e aguçam o senso crítico do usuário.
Essas regras formam a base da colaboração, mas a linguagem dessa colaboração – o prompt – revela-se um fenômeno muito mais profundo.
3. A NOVA RETÓRICA PROCESSUAL: O PROMPT COMO DISCURSO ARGUMENTATIVO
A eficácia da cointeligência depende da habilidade do jurista em se comunicar com a máquina. Essa comunicação não é mera sintaxe; é retórica, a arte da persuasão.
3.1. A Dimensão Perelmaniana: O Jurista como Orador e a IA como Auditório
A Nova Retórica de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca (2005) situa a argumentação no domínio do plausível e do razoável. Sua teoria é um poderoso instrumento para decodificar a dinâmica do prompting. Na interação com a IA, o jurista é o orador e a IA, um auditório particular, com características próprias. Para persuadi-lo, o orador deve construir um argumento verossímil a partir das premissas que o auditório-máquina "conhece". A distinção entre persuadir (visando um auditório particular) e convencer (visando um auditório universal) é crucial: o jurista persuade a máquina para, com o resultado, convencer os humanos.
3.2. A Estrutura Clássica da Persuasão: Ethos, Logos e Pathos no Prompt
A eficácia desse ato retórico pode ser decomposta segundo a tríade aristotélica:
Ethos (A Credibilidade e a Ética do Jurista-Orador)
O ethos manifesta-se na responsabilidade ética e transparência do prompt. Documentar os prompts utilizados fortalece o ethos, demonstrando lealdade processual e tornando o processo de co-criação intelectual auditável.
Exemplo de Aplicação e Resultado Esperado:
Prompt: "Atuando como assistente de um advogado comprometido com a lealdade processual, liste os principais argumentos jurisprudenciais do Tribunal de Justiça de São Paulo, nos últimos 3 anos, que sustentam a tese da autora (nulidade de cláusula de tolerância em contrato de promessa de compra e venda) e, em seção separada, liste os argumentos contrários, que favorecem a tese da construtora."
Resultado Esperado: A IA não produzirá um texto enviesado, mas sim um panorama equilibrado que serve como ferramenta de análise de risco e preparação para o contraditório. Isso demonstra o ethos do advogado, que busca a verdade processual, e não apenas a confirmação de suas próprias teses.
Logos (A Racionalidade e a Lógica do Discurso-Prompt)
O logos reside na precisão, estrutura e consistência jurídica do comando. É a transformação da dúvida jurídica em uma instrução racionalmente estruturada.
Exemplo de Aplicação e Resultado Esperado:
Prompt: "Analise o seguinte cenário fático à luz do direito brasileiro: [descrever detalhadamente o caso de um acidente de trânsito com culpa concorrente]. Com base no artigo 945 do Código Civil, elabore uma tese jurídica para a petição inicial, sugerindo uma fórmula para a fixação da indenização que considere a gravidade da culpa da vítima e do autor do dano. Fundamente com doutrina sobre responsabilidade civil."
Resultado Esperado: Em vez de uma resposta genérica sobre culpa concorrente, a IA entregará uma análise aplicada, conectando o fato específico à norma (art. 945), à jurisprudência e à doutrina, e propondo uma solução concreta e fundamentada (a fórmula de fixação), demonstrando o poder de um prompt com alto logos.
Pathos (A Sensibilidade e a Humanização do Discurso)
O pathos é a capacidade de calibrar o tom e a perspectiva humanística da resposta, guiando a IA a construir uma narrativa que respeite a dignidade humana.
Exemplo de Aplicação e Resultado Esperado:
Prompt: "Redija um esboço para as alegações finais em um caso de assédio moral no ambiente de trabalho. Adote um tom que, sem ser excessivamente emotivo, transmita a gravidade do sofrimento psicológico da vítima, descrevendo como a conduta reiterada do superior hierárquico minou sua autoestima e dignidade. Conecte essa narrativa humanizada com o conceito jurídico de dano existencial."
Resultado Esperado: A IA produzirá um texto que vai além da simples subsunção do fato à norma. Ela construirá uma narrativa persuasiva, que contextualiza o dano e apela a um senso de justiça mais profundo, demonstrando como o pathos pode ser usado para gerar peças processuais mais impactantes e humanas.
4. PARA ALÉM DA RETÓRICA: O JURISTA COMO ARQUITETO DO CONTEXTO
A maestria retórica, contudo, é apenas metade da equação. Um prompt brilhante pode falhar se o ambiente informacional da IA for caótico. Emerge, assim, uma nova disciplina: a engenharia de contexto.
4.1. Da Engenharia de Prompt à Engenharia de Contexto
Conforme aponta a análise de Henrique Sampaio (2025), o desafio está deixando de ser "o que perguntar" para se tornar "como organizar a informação para que a IA responda bem". A engenharia de contexto é a prática de projetar e curar o ambiente no qual a IA opera, orquestrando memórias, ferramentas (APIs, acesso a bases de dados) e fluxos de informação. O jurista precisa evoluir de orador para arquiteto da informação.
4.2. O Contexto como Fundamento do Logos Arquitetônico
A engenharia de contexto é a aplicação do logos em nível macro, ou arquitetônico. Ela garante que a lógica da pergunta encontre um ambiente igualmente lógico. Isso implica, por exemplo, em delimitar as fontes de dados que a IA pode consultar para um caso específico, garantindo que ela se atenha aos autos do processo e à legislação pertinente, em vez de "alucinar" com base em toda a internet. O jurista-arquiteto constrói a "cerca" informacional que garante a relevância e a confidencialidade da resposta.
5. O PANO DE FUNDO SISTÊMICO: JUSTIÇA 5.0 E O DEVIDO PROCESSO TECNOLÓGICO
Essa nova competência arquitetônica é a base técnica para a construção da Justiça 5.0. Conforme defende Dierle Nunes (2024), este paradigma, radicalmente centrado na pessoa, depende de uma abordagem data-driven que seja funcional e segura. Uma justiça data-driven sem uma robusta engenharia de contexto é um sistema propenso ao caos e ao erro, minando a confiança e violando o devido processo tecnológico. As garantias constitucionais, nesse novo ambiente, dependem de um contexto informacional íntegro, relevante e auditável.
6. A CONSCIÊNCIA CRÍTICA: RISCOS ÉTICOS NA ERA DA ARQUITETURA DA INFORMAÇÃO
A responsabilidade do jurista-arquiteto é imensa, pois uma arquitetura de contexto falha amplifica os riscos éticos. As preocupações de Zuboff (2019) e Han (2019) se materializam nos perigos processuais apontados por Ricardo Pizarro (2025):
Viés de Automação: A confiança cega em uma IA que opera em um contexto mal projetado é ainda mais perigosa. O jurista pode ser levado a validar uma informação juridicamente correta, mas factualmente errada, porque a IA a extraiu de uma fonte inadequada dentro de seu contexto.
Discriminação Algorítmica em Nível de Arquitetura: O risco não está mais apenas nos dados de treinamento, mas nas fontes de dados que o jurista conecta ao sistema. Conectar a IA a bases de dados governamentais que contenham vieses históricos, sem os devidos filtros, é uma falha de arquitetura com consequências éticas devastadoras.
A Opacidade da "Caixa-Preta": A opacidade se aprofunda. Se não sabemos como a IA raciocina, a situação é pior se também não soubermos com quais informações ela está raciocinando. A documentação do prompt (retórica) e do contexto (arquitetura) torna-se a única forma de mitigar a "caixa-preta".
A fronteira da cointeligência permanece sendo a incomputabilidade da justiça. A empatia, a equidade e a coragem moral não podem ser programadas em um contexto. São o domínio soberano da consciência humana.
7. CONCLUSÃO: RUMO A UMA SOBERANIA JURÍDICA TRIPLA
A jornada do jurista na era digital é uma espiral de sofisticação. Ele começa como um usuário que aprende as regras da cointeligência; evolui para um orador que domina a nova retórica processual; e, finalmente, amadurece como um arquiteto que projeta e governa o ambiente informacional em que a IA opera.
O futuro do Direito não será definido pela tecnologia em si, mas pela capacidade dos seus profissionais de exercerem uma soberania tripla:
Soberania Retórica: A maestria da linguagem para dialogar criticamente com a máquina.
Soberania Arquitetônica: O domínio sobre a curadoria e a estrutura do contexto informacional.
Soberania Ética: A vigilância inabalável e a responsabilidade final sobre um processo que deve, em todas as suas fases, permanecer humano.
Dominar essa trindade de competências não é uma opção, mas o imperativo categórico para quem deseja praticar o Direito e promover a justiça no século XXI.
REFERÊNCIAS
CÁRDENAS CAYCEDO, Omar A. El proceso y la IA en la Quinta Revolución Industrial: el trabajo colaborativo humano-máquina y la construcción de prompts. In: XLVI Congreso Colombiano de Derecho Procesal. Medellín: [s.n.], 2025.
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
MOLLICK, Ethan. Co-Intelligence: Living and Working with AI. New York: Penguin Random House, 2024. [Título original para referência, aguardando tradução oficial no Brasil].
NUNES, Dierle. IA, tecnologias e devido processo: por uma Justiça 5.0 centrada nas pessoas mediante uma abordagem data-driven. Revista de Processo, v. 356, p. 389-410, out. 2024.
PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: a Nova Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
PIZARRO, Ricardo. Riesgos éticos de la IA en la decisión jurídica. In: La 5.º Revolución Industrial y la Administración de Justicia. Medellín: Instituto Colombiano de Derecho Procesal, 2025.
SAMPAIO, Henrique. Esqueça a ‘engenharia de prompt’: a nova onda da IA é engenharia de contexto. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 20 jul. 2025. Disponível em: https://es.bab.la/ejemplos/espanol/se-especifica. Acesso em: 18 ago. 2025.
ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power. New York: PublicAffairs, 2019.


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