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Coelho Neto e a Riqueza Lexical: Um Antídoto contra a Pobreza de Palavras

  • Foto do escritor: gleniosabbad
    gleniosabbad
  • 3 de out.
  • 4 min de leitura

Por Glênio S Guedes ( advogado )


Vivemos em uma era de comunicação instantânea, de mensagens medidas em caracteres e de ideias comprimidas em hashtags. Essa velocidade, embora conectiva, cobra seu preço: uma crescente penúria lexical. Não se trata apenas da diminuição do vocabulário ativo — as palavras que usamos efetivamente no dia a dia —, mas também do enfraquecimento do vocabulário passivo — aquelas que compreendemos, mas já não mobilizamos.

O empobrecimento lexical, seja quantitativo (número de palavras) ou qualitativo (variedade de campos semânticos, polissemia, metáforas), restringe campos de sentido e limita a possibilidade de expressão de nuances. E, como ensinou Wittgenstein, “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Recuperar, portanto, a riqueza das palavras é mais que exercício literário: é ato de sobrevivência intelectual e cultural. Poucos autores oferecem antídoto tão potente quanto Henrique Coelho Neto.


Linguagem, Pensamento e Cultura: A Arquitetura Lexical


A linguagem não é mero depósito de rótulos para conceitos pré-existentes; é um sistema estruturante de mundos. Steven Pinker a descreve como “sistema combinatório discreto”. Fillmore fala em frames semânticos, nos quais cada palavra ativa uma rede de sentidos culturais e cognitivos. Anna Wierzbicka acrescenta que cada termo carrega scripts culturais, condensando experiências coletivas.

Do ponto de vista da neurociência, a aprendizagem de novos vocábulos fortalece conexões no giro temporal superior e no córtex pré-frontal, ampliando a plasticidade cerebral. Vygotsky mostrou que pensamento e linguagem se interpenetram, enquanto Ricoeur destacou a capacidade da linguagem de configurar e refigurar o mundo por meio da narrativa.

Assim, um vocabulário robusto é mais que um dicionário mental: é mapa de mundos possíveis. A redução lexical contemporânea não é mero detalhe estilístico: ela achata campos semânticos e empobrece jogos de linguagem. A prosa de Coelho Neto, ao contrário, expande-os continuamente.


O Gigante das Letras: Quem Foi Coelho Neto?


Henrique Maximiano Coelho Neto (1864-1934), nascido em Caxias (MA) e radicado no Rio, foi um polímata literário. Abandonou o curso de Direito para engajar-se na campanha abolicionista ao lado de José do Patrocínio.

Sua trajetória impressiona: publicou mais de cem volumes — romances, contos, peças, crônicas, ensaios — vivendo exclusivamente da escrita. Foi professor do Colégio Pedro II, diretor da Escola Dramática Municipal, deputado federal, presidente da Academia Brasileira de Letras e indicado ao Nobel de Literatura em 1932.

Os modernistas de 1922 o tacharam de “passadista”, em oposição ao projeto vanguardista de Mário e Oswald de Andrade. Mas, se vistos hoje, seus recursos estilísticos revelam um escritor experimental e visionário, que sabia cruzar erudição e oralidade, resgatando o passado e projetando o futuro da língua.


O Estilo como Antídoto: O Arsenal Verbal de Coelho Neto


Mais que a obra, é o estilo lexical de Coelho Neto que se revela antídoto contra a pobreza de palavras.


  1. Universo verbal próprio

    Criou um idioleto inconfundível, uma “cartografia lexical” com mais de vinte mil palavras.

  2. Ressurreição e criação

    Nenhuma palavra estava morta: revivia arcaísmos, mas também criava neologismos (arminhar, badalhocarem). Não apenas reintroduzia termos, mas lhes dava nova semântica, expandindo campos de sentido.

  3. Musicalidade da prosa

    Sua escrita alia semântica e fonoestilística: aliterações, assonâncias, ritmo. Verbos como giro-girar ou luci-luzir intensificam ação e som, mostrando que o sentido também se constrói pelo ouvido.

  4. A alma brasileira na palavra

    Incorporou brasileirismos, africanismos, termos indígenas, refletindo múltiplos scripts culturais. Sua obra é vertical (arcaísmos, latinismos) e horizontal (falares populares), fundindo erudição e oralidade. Em Rei Negro, a língua viva do povo se torna literatura.


Por Que Ler Coelho Neto Hoje?


Ler Coelho Neto é treinamento intelectual e cultural. Sua opulência lexical exige atenção, expande repertórios e demonstra que riqueza vocabular não obscurece, mas ilumina o pensamento. Joaquim Ribeiro descreveu seu estilo como “solar” e “apolíneo”, unindo clareza e densidade.

Na filosofia da linguagem, Heidegger dizia que “a linguagem é a morada do ser”. Coelho Neto prova que habitar o português em sua plenitude é abrir novas moradas do ser brasileiro. Ao lado disso, sua prosa é convite a múltiplos jogos de linguagem (Wittgenstein), que enriquecem não apenas a forma, mas também a experiência de mundo.

Na era digital, em que hashtags comprimem universos semânticos e colapsam campos de sentido, Coelho Neto oferece o exercício oposto: a reexpansão semântica da língua. Sua obra mostra que cada palavra é uma centelha de pensamento, e que cultivar o léxico é cultivar também a imaginação e a liberdade.


Referências Bibliográficas


  • Coutinho, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.

  • Faria, Octavio de. Coelho Neto: Romance. 2ª ed., Rio de Janeiro: AGIR, 1963.

  • Heidegger, Martin. A Caminho da Linguagem. Petrópolis: Vozes, 2003.

  • Lakoff, George; Johnson, Mark. Metaphors We Live By. Chicago: University of Chicago Press, 1980.

  • Moraes, Péricles. Coelho Neto e Sua Obra. Manaus: Fundo Municipal de Cultura, 2016.

  • Pinker, Steven. O Instinto da Linguagem. Trad. C. Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

  • Ricoeur, Paul. Tempo e Narrativa I. Campinas: Papirus, 1994.

  • Ribeiro, Joaquim. “Problemática Estilística de Coelho Neto”. In: Azevedo Filho, Leodegário A. de (Org.). Estudos Filológicos (Homenagem a Serafim da Silva Neto). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1979.

  • Vygotsky, Lev. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

  • Wierzbicka, Anna. Semantics: Primes and Universals. Oxford: Oxford University Press, 1996.

  • Wittgenstein, Ludwig. Investigações Filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 1999.


 
 
 

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