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Branly, um museu poliedricamente saboroso

  • Foto do escritor: gleniosabbad
    gleniosabbad
  • 2 de out.
  • 4 min de leitura

Por Glênio S Guedes ( advogado )


SOBRETUDO, NÃO PERTURBAR!
Píton sagrado Yurlunggur, terra de Arnhem, Austrália, 1963. Autor: Bininjyiwui. “Um dia, a serpente Yurlunggur repousava em sua poça de água bem forrada de folhas de eucalipto, quando foi bruscamente despertada por passos e vozes. Furiosa por ter sido importunada, engoliu vivos os infelizes intrusos. Depois, regurgitou-os em forma de rochas e, em sua fúria, provocou uma chuva diluviana. Este relato do Tempo do Sonho foi narrado por Bininjyiwui, pintor aborígene da terra de Arnhem, em uma pintura sobre casca de árvore. Ele ocupa lugar nas cerimônias de iniciação dos jovens adolescentes.”

Há museus que guardam objetos e há museus que contam histórias. E há o Museu do Quai Branly, um dos melhores museus de Paris, que faz algo diferente: ele oferece uma linguagem. Visitar o Branly não é apenas percorrer corredores e admirar peças; é engajar-se em um ato de leitura, decifrar um texto complexo e polifônico sobre as culturas não ocidentais. Sua natureza sui generis reside precisamente em sua transversalidade, na forma como nos convida a abandonar uma única narrativa para explorar uma rede de significados. Utilizando o guia Objectif musée du quai Branly como nosso mapa e a semiótica como nossa bússola, proponho aqui um critério de visitação que abraça essa riqueza, transformando o visitante em um leitor ativo no fascinante espaço semiótico que é o Branly.


O museu como linguagem


A abordagem semiótica nos ensina que o museu é um meio de comunicação, um sistema dinâmico que organiza signos — os objetos — para construir discursos sobre a cultura. Esses objetos não falam por si: são investidos de sentido pelo processo de musealização, que os transforma em “representações culturais”. O guia do Branly, de forma brilhante, nos oferece duas maneiras principais de ler essas representações: uma jornada geográfica e uma série de percursos temáticos transversais.


A Leitura Geográfica: O Sintagma da Visita


A primeira proposta do guia é um percurso continental, seguindo o código de cores no chão do museu: Oceania, Ásia, África e Américas. Essa é a leitura sintagmática, uma sequência organizada que nos conduz através de diferentes universos culturais, semelhante à forma como organizamos a narrativa de nossas vidas em uma linha cronológica.


  • Oceania: A pintura em casca de árvore do píton sagrado Yurlunggur não é apenas imagem: é fragmento narrativo do “Tempo do Sonho” que ancora a memória mítica dos aborígenes. Um crânio troféu da Papua-Nova Guiné, decorado e preservado, deixa de ser resto mortal para se tornar símbolo de energia, potência e proteção ancestral.

  • Ásia: Um traje de xamã da Mongólia traz franjas que simbolizam asas e serpentes de tecido que representam forças subterrâneas. Não se trata de ornamentos, mas de significantes precisos no sistema ritualístico que comunica a jornada espiritual do xamã.

  • África: Uma estatueta de maternidade Zlan é ícone de fertilidade, mas suas escarificações e coiffure são índices do status social. Já uma estatueta nkisi da África Equatorial, repleta de pregos, funciona como signo ativo: cada inserção materializa um pacto, um pedido, uma cura. Aqui o museu não mostra apenas símbolos, mas registros sociais concretos.

  • Américas: A robe d’exploits dos Sioux é literalmente um texto visual que narra batalhas vividas por seu portador. O masque à transformação Kwakiutl, que revela outro rosto oculto, expressa a metamorfose central na cosmologia desse povo — entre humano e espírito, visível e invisível.


A Leitura Transversal: Para Além da Geografia


É nos percursos transversais que a natureza sui generis do Branly se revela com mais intensidade. O guia convida a romper a linearidade geográfica para criar novas conexões, em uma leitura paradigmática que atravessa continentes.


  • “L’odyssée des masques”: A máscara não representa apenas um espírito: ela o torna presente. O masque Fang do Gabão, coberto de caulim branco, encarna o poder dos ancestrais; o masque à igname da Papua celebra a fertilidade; o masque n’tomo do Mali guia a iniciação dos jovens. Ícones, índices e símbolos coexistem nesse operador visual de identidade e metamorfose.

  • “D’or et d’écailles”: Aqui, a matéria-prima é signo. O ouro de uma coroa de Sumatra comunica não apenas riqueza, mas divindade e autoridade. Plumas Wayana conectam o portador ao mundo dos pássaros, mediadores com o sagrado. Conchas Cauris em máscaras Dogon evocam prosperidade. A substância deixa de ser ornamento para se tornar código.

  • “Mythes, contes et légendes”: Objetos como o moai kava-kava da Ilha de Páscoa encarnam narrativas míticas, funcionando como relais entre a materialidade da escultura e a imaterialidade da lenda. São testemunhos tangíveis de universos invisíveis.


O Branly e a Vida Contemporânea


A grande contribuição do Branly está em nos mostrar que o sentido é sempre relacional e instável. Um objeto, retirado de seu contexto original, torna-se “objeto-devir”: portador de múltiplas leituras possíveis. Assim também são nossas experiências: formaturas, perdas, viagens. Cada acontecimento adquire sentidos diversos ao longo do tempo, atravessando nossos próprios “percursos transversais” — amor, aprendizado, ambição, finitude.

A visita geográfica corresponde à biografia cronológica; os percursos temáticos, às grandes forças que atravessam nossa vida. Uma máscara Okuyi do Gabão, inscrita no rito funerário, dialoga com um masque funerário da Colômbia e nos lembra da universalidade da morte. Assim, como indivíduos, também somos textos compostos por cronologias e metáforas transversais.

O Branly ensina que nenhuma cultura é uma ilha — e nenhum indivíduo também o é. O museu, com seu jardim vertical aberto à cidade e sua arquitetura permeável, recusa o isolamento. Ele nos lembra que culturas ancestrais não estão congeladas: continuam vivas, reinterpretadas por artistas indígenas e afrodescendentes convidados pelo próprio Branly a dialogar com o acervo.

Essa é a lição crucial: aprender a viver na polissemia, a reconhecer a complexidade contra as narrativas simplistas. Em tempos de polarização, a competência de leitura que o Branly nos oferece — ver o mundo como rede de signos — é uma pedagogia para a vida.


Bibliografia


  • BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios sobre fotografia, cinema, teatro e música. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

  • CRIPPA, Giulia. “Museus e linguagem: uma análise semiótica das interações entre museus e cidades”. Letras, Santa Maria, v. 23, n. 46, p. 133-152, jan./jun. 2013.

  • HORTA, Maria de Lourdes Parreiras. “Semiótica e Museu”. In: Estudos de Museologia. IPHAN, 1994.

  • LAGE, Lucas Emanuel Pereira. “Expologia e Semiótica: a significação e comunicação de objetos em museus”. In: Encontro Regional da ANPAP SUL, 2021.

  • LAVAQUERIE KLEIN, C.; PAIX-RUSTERHOLTZ, L. Objectif musée du quai Branly: Le guide des visites en famille.

  • SILVEIRA, Andréa Reis da. Teoria do Objeto. Indaial: UNIASSELVI, 2022.

 
 
 

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