A Teoria da Literatura importa, é útil aos Advogados?
- gleniosabbad
- 18 de out.
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Por Glênio Sabbad Guedes ( advogado )
À primeira vista, a pergunta que intitula este artigo pode parecer contraintuitiva, talvez até um devaneio acadêmico. O que um advogado, profissional dedicado aos fatos, às normas e à lógica inflexível do Direito, teria a ganhar com o estudo sistemático da poesia e da ficção? A resposta, no entanto, é mais profunda e pragmática do que se imagina. A Teoria da Literatura, longe de ser um passatempo ornamental, é um campo de conhecimento que afia ferramentas intelectuais essenciais para a prática jurídica: a interpretação rigorosa, a construção de narrativas persuasivas e uma compreensão crítica sobre a própria natureza da linguagem.
Argumentaremos que, ao se debruçar sobre a Teoria da Literatura, o profissional do Direito não está se afastando de sua área, mas sim aprofundando-se no cerne de sua própria atividade: o trabalho com a palavra.
O Que é, Afinal, a Teoria da Literatura?
Antes de tudo, é preciso definir nosso objeto. A Teoria da Literatura, como disciplina constituída no século XX, diferencia-se de abordagens anteriores, como a história literária ou a crítica impressionista. Seu principal interesse não é a biografia do autor ou o contexto social da obra como causas exteriores , nem a emissão de juízos de valor baseados em impressões pessoais. Em vez disso, a teoria se propõe a investigar o próprio texto, entendido como um arranjo especial de linguagem cujas articulações e organização podem ser descritas e explicadas na sua imanência.
A questão fundamental que move essa disciplina foi encapsulada pelo linguista Roman Jakobson: “o objeto do estudo literário não é a literatura, mas a literariedade, isto é, aquilo que torna determinada obra uma obra literária”. Em outras palavras, a teoria busca compreender as “propriedades específicas” dos textos, os mecanismos, convenções, códigos e estruturas que os distinguem de outras formas de discurso. Ela não pergunta apenas o que um texto significa, mas, fundamentalmente, como ele significa.
É exatamente neste "como" que reside a sua imensa utilidade para o advogado.
A Hermenêutica: O Advogado Como Intérprete Profissional
A prática jurídica é, em sua essência, um exercício de hermenêutica — a ciência ou a arte da interpretação. Advogados, juízes e promotores dedicam suas vidas a interpretar textos: leis, contratos, depoimentos, precedentes. A Teoria da Literatura, especialmente em sua vertente hermenêutica, oferece um arcabouço sofisticado para compreender esse processo.
O filósofo Hans-Georg Gadamer, por exemplo, descreve a interpretação como um diálogo entre o passado (o texto) e o presente (o intérprete). A compreensão ocorre quando nosso "horizonte" de significados e suposições históricas se "funde" com o horizonte dentro do qual a própria obra está colocada. Isso não é exatamente o que um advogado faz ao interpretar uma lei promulgada décadas atrás para aplicá-la a um caso contemporâneo? Ele precisa fundir o horizonte histórico da lei com o horizonte do problema atual.
Gadamer também argumenta que todo entendimento parte de "pré-entendimentos" ou "preconceitos", que não são necessariamente negativos, mas as condições que tornam a compreensão possível. Para o Direito, isso é crucial. A interpretação de uma norma nunca é neutra; ela sempre parte de uma escola de pensamento, de uma doutrina, de um "pré-entendimento" sobre o que é justiça ou qual o papel do Estado. Reconhecer isso, como a teoria literária nos ensina, é o primeiro passo para uma argumentação mais consciente e crítica, capaz de questionar não apenas os fatos do caso, mas os próprios pressupostos interpretativos da parte contrária.
A Narrativa e a Retórica: Construindo o Caso
Um processo judicial raramente é vencido apenas pela apresentação de fatos brutos. Ele é ganho pela construção da narrativa mais convincente. A Teoria da Literatura, através da narratologia — a ciência dos processos narrativos —, oferece as ferramentas para entender como as narrativas são estruturadas e como produzem seus efeitos.
Os formalistas russos distinguiam entre a "história" (a sequência cronológica dos eventos) e a "trama" (a forma como esses eventos são apresentados no texto). O teórico Gérard Genette aprofundou essa ideia, distinguindo a histoire (a sequência real dos acontecimentos) do récit (a ordem dos acontecimentos no texto). Um advogado faz exatamente isso: ele pega a histoire — uma série cronológica e muitas vezes caótica de eventos — e a organiza em um récit coeso e persuasivo para apresentar ao júri ou ao juiz. Ele escolhe o que enfatizar, o que omitir, por onde começar e onde terminar para construir o caso mais favorável ao seu cliente.
Essa construção é um ato de retórica, a antiga disciplina que ensina a utilizar a língua para produzir textos persuasivos. A retórica clássica dividia a constituição do discurso em partes como a inventio (a descoberta dos argumentos) e a dispositio (a distribuição estrutural dos argumentos). Não seria essa uma descrição precisa do trabalho de um advogado ao preparar sua petição inicial ou suas alegações finais? Ele precisa "descobrir" os melhores argumentos (fáticos e legais) e "estruturá-los" da forma mais eficaz. Estudar a teoria da narrativa e da retórica é, portanto, estudar a própria arquitetura da persuasão jurídica.
A Linguagem em Crise: A Utilidade da Desconstrução no Direito
O Direito depende da crença de que a linguagem pode ser estável e ter um significado fixo. Contudo, qualquer advogado experiente sabe que a linguagem é um campo de batalha. Palavras em contratos são disputadas, artigos de lei geram interpretações conflitantes, e o "sentido claro" de um texto pode se revelar uma miragem.
É aqui que o pós-estruturalismo, uma vertente da teoria literária, torna-se uma ferramenta poderosa. Pensadores como Jacques Derrida argumentam que o significado nunca está plenamente "presente" em um signo; ele é sempre produto de um jogo de diferenças que pode ser estendido interminavelmente. A significação está sempre "dispersa" e nunca pode ser fixada de uma vez por todas.
Essa compreensão é libertadora para um advogado. Ela permite "desconstruir" o texto da parte contrária, ou a própria lei, mostrando como oposições binárias aparentemente rígidas (legal/ilegal, justo/injusto, culpado/inocente) podem se enfraquecer mutuamente no processo textual. A desconstrução busca os "pontos sintomáticos" ou as "aporias", os impasses de significado onde um texto — seja um poema ou um contrato — entra em contradição consigo mesmo. Encontrar essa "aporia" em um contrato ou em uma lei é, muitas vezes, o que define a vitória em um caso.
Além disso, o pós-estruturalismo nos alerta para a natureza ideológica da linguagem. Por "ideologia", entende-se a maneira pela qual "aquilo que dizemos e no que acreditamos se relaciona com a estrutura do poder e com as relações de poder da sociedade em que vivemos". A linguagem jurídica, que se apresenta como neutra e objetiva, está carregada de valores e pressupostos. A Teoria da Literatura ensina o advogado a ler "contra a corrente", a identificar esses pressupostos e a questionar a "naturalidade" com que certas interpretações são impostas.
A Teoria na Prática: Exemplos de Aplicação no Campo Jurídico
Para tornar a conexão mais clara, vejamos alguns cenários práticos:
Exemplo 1: Hermenêutica e a Interpretação de Contratos
Imagine um contrato de prestação de serviços que contém a seguinte cláusula: "A parte contratada deverá entregar relatórios periódicos sobre o andamento do projeto". A contratante alega que "periódicos" significa "semanais", enquanto a contratada sustenta que significa "mensais". A disputa parece puramente semântica. Um advogado com treinamento em hermenêutica literária sabe que o significado não reside apenas na palavra isolada, mas em sua relação com o texto como um todo (o contrato) e com o contexto (a prática usual no setor, as negociações prévias). Ele argumentará que o "horizonte" do contrato, que previa um projeto de longo prazo com etapas mensuráveis, torna a interpretação "mensal" mais coerente com a estrutura narrativa do acordo, transformando a demanda por relatórios semanais em um "pré-entendimento" desarrazoado e contrário ao espírito da convenção.
Exemplo 2: Narratologia e o Tribunal do Júri
Em um caso de homicídio, a defesa alega legítima defesa. A história (os fatos brutos) é: uma discussão, uma agressão inicial da vítima e uma reação fatal do réu. O promotor constrói seu récit (trama) começando pela reação desproporcional, pintando o réu como um indivíduo violento e tratando a agressão da vítima como um detalhe menor. O advogado de defesa, aplicando a narratologia, reconstrói a narrativa. Ele começa sua argumentação dias antes do evento, detalhando as ameaças prévias sofridas pelo réu (prolepse), construindo uma atmosfera de medo e perigo iminente. Ele descreve a agressão da vítima em detalhes vívidos e apresenta a reação do réu não como um ato de violência, mas como o clímax inevitável de uma história de perseguição e terror. Ao reordenar a trama, ele altera completamente o significado da história e a percepção do júri sobre o caráter do protagonista.
Exemplo 3: Desconstrução e o Direito de Família
Um casal homoafetivo busca o reconhecimento de uma união estável para fins de herança, mas a lei local, antiga, refere-se explicitamente a "união entre homem e mulher" como base para a entidade familiar. Uma abordagem literalista seria desfavorável. O advogado, usando uma tática desconstrutivista, pode argumentar que a oposição binária "homem/mulher" no texto legal não é um pilar absoluto, mas uma construção histórica que depende da exclusão de outras formas de afeto para se afirmar. Ele pode demonstrar que o próprio conceito de "família" na legislação correlata (como o Estatuto da Criança e do Adolescente) já se baseia em laços de afeto e cuidado, e não na biologia. Ao fazer isso, ele desestabiliza o significado "óbvio" da lei, mostrando que o termo "família" é uma palavra "escorregadia", cujo sentido foi artificialmente limitado. Ele não está pedindo para ignorar a lei, mas para revelar sua contradição interna e argumentar que o princípio maior da dignidade humana, presente na Constituição, deve prevalecer sobre uma definição restritiva e datada.
Conclusão
Portanto, a Teoria da Literatura importa, e muito, para o advogado. Ela não oferece respostas prontas para casos específicos, mas proporciona algo muito mais valioso: um treinamento avançado na competência central de toda a prática jurídica.
Ela nos ensina, através da hermenêutica, que toda leitura é uma interpretação situada e que compreender os "pré-entendimentos" é a chave para uma análise crítica.
Ela nos mostra, através da narratologia e da retórica, que a persuasão depende da construção de narrativas coesas e que dominar essa estrutura é dominar a arte de convencer.
Ela revela, através do pós-estruturalismo, a instabilidade inerente à linguagem, oferecendo métodos para questionar significados aparentemente fixos e desvendar as ideologias ocultas nos discursos.
Em um mundo onde o Direito é cada vez mais complexo e a argumentação cada vez mais sofisticada, o advogado que se dedica a compreender como a linguagem funciona terá sempre uma vantagem inestimável. A Teoria da Literatura, longe de ser um luxo, é um investimento estratégico na mais fundamental de todas as ferramentas jurídicas: a palavra.
Bibliografia
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