top of page
Logo.png

A Pedra que Pensava: a escrita dos cônios e o nascimento do signo

  • Foto do escritor: gleniosabbad
    gleniosabbad
  • 20 de nov.
  • 7 min de leitura

Por Glênio Sabbad Guedes ( advogado )


1. Introdução


Entre o silêncio das pedras e a voz das civilizações perdidas, Almodôvar ergue-se como território de memória e signo. O que ali se grava nas estelas de xisto não é apenas traço, mas pensamento petrificado. Daí o título: a pedra que pensava. Cada inscrição é uma hipótese de linguagem, um eco de um espírito antigo que, sem conhecer a abstração das letras gregas ou latinas, ousou inscrever o invisível no visível.

Durante muito tempo, os arqueólogos atribuíram essa escrita aos tartéssios, associando-a ao vale do Guadalquivir e à mítica Tartessos. Contudo, os estudos mais recentes — como os de Amílcar Guerra, Virgílio Hipólito Correia e Víctor Manuel Villegas Fernández — demonstram que, na região de Almodôvar, o povo que desenvolveu e usou esta escrita foi o dos Cônios (Conii ou Kónioi), habitantes do extremo sudoeste peninsular, entre o Alentejo e o Algarve.

Esta revisão etnohistórica muda tudo: as pedras de Almodôvar deixam de ser mera derivação tartésica para se tornarem documentos de autonomia cultural, marcando um momento de invenção e de identidade linguística. Não se trata apenas de arqueologia, mas de uma reflexão sobre o nascimento do signo, no sentido semiótico proposto por Charles Sanders Peirce — quando o homem, diante do mundo, aprende a transformar a experiência em símbolo.

Estivemos pessoalmente no Museu da Escrita do Sudoeste (MESA), em Almodôvar, ainda antes de sua reabertura oficial em junho de 2024, quando o acervo se encontrava temporariamente no antigo Convento de São Francisco (atual Fórum Cultural de Almodôvar). A reinauguração no edifício da Rua do Relógio marcou a nova etapa museográfica do museu, agora ampliado e modernizado, reafirmando a vocação científica e educativa do concelho. Essa visita — feita ainda na fase anterior — permitiu observar de perto a textura das pedras, o traçado dos signos e o próprio ambiente museográfico, em que o silêncio da matéria convida o visitante a uma escuta arqueológica do tempo.


2. Os cônios e a escrita do Sudoeste


A escrita do Sudoeste é a mais antiga forma de grafia conhecida na Península Ibérica, datando de aproximadamente 2 500 anos, entre os séculos VIII e V a.C. É uma escrita alfabético-silábica, de origem fenícia, adaptada às necessidades fonéticas das línguas locais. Essa adaptação — como observa Correia (2014) — deu origem a um semissilabário próprio, diferente das escritas gregas e fenícias originais, inaugurando uma tradição paleohispânica que sobreviveria, com variações, no Levante e na Meseta.

Os Cônios habitavam a serra que hoje separa o Alentejo do Algarve, uma região acidentada, de difícil acesso, mas estrategicamente situada entre as rotas mediterrânicas e atlânticas. O nome do povo aparece nas fontes greco-latinas (como Estrabão, Políbio e Avieno) sob formas como Kónioi ou Cynetes, indicando que se tratava de comunidades autóctones com práticas culturais consolidadas antes mesmo da chegada dos fenícios.

Esses contatos marítimos introduziram o uso da escrita como instrumento de troca, registro e poder. Como observa Carlos G. Wagner (1995), a colonização fenícia instaurou na região uma relação de dependência e intercâmbio desigual, em que as elites locais — seduzidas pelo brilho orientalizante — aprenderam a dominar os signos, convertendo-os em símbolo de distinção social. A escrita, portanto, surge como mediação entre economia e religião, entre poder e memória.

Mas em Almodôvar essa mediação assume uma feição distinta: as estelas do Sudoeste — monumentos funerários ou votivos — não são simples transcrições de nomes; são mapas mentais, inscrições da passagem humana pelo mundo. Nelas, cada sinal parece condensar a energia de uma cosmovisão: não apenas comunicar, mas fazer ser. Nesse sentido, o gesto de escrever é também o gesto de fundar o mundo.


3. O suporte material: o xisto como memória


O MESA conserva várias estelas epigrafadas, algumas de tamanho monumental, outras fragmentadas. A textura do xisto, sua fragilidade e brilho metálico conferem-lhes um caráter paradoxal: são pedras que parecem feitas para durar, mas que se desagregam ao toque. A materialidade do suporte torna-se, assim, parte da própria semiose: o signo é, simultaneamente, inscrição e erosão.

Na observação direta das peças — especialmente das estelas provenientes de S. Martinho, Corte do Freixo e Mesas do Castelinho — nota-se que os sinais seguem direções variadas, por vezes horizontais, por vezes verticais ou mesmo alternadas, como se o gesto de escrever ainda estivesse em busca de uma norma. Essa irregularidade, longe de indicar primitivismo, revela o caráter experimental e simbólico da escrita: mais próxima do desenho do que da letra.

Amílcar Guerra observa que muitas dessas estelas apresentam decoração figurativa associada à inscrição, representando guerreiros, cavalos ou símbolos solares. Tais elementos, quando vistos à luz da semiótica peirceana, revelam-se ícones — representações motivadas pela semelhança com o real — enquanto os caracteres alfabéticos, arbitrários e convencionais, são símbolos. A coexistência de ambos na mesma peça traduz a transição de uma mentalidade mítica para uma lógica representacional.


4. O signo segundo Peirce: da pedra ao pensamento


Charles S. Peirce definiu o signo como “algo que está para alguém no lugar de algo, sob algum aspecto ou capacidade”. É, portanto, uma relação triádica entre representamen, objeto e interpretante. Essa estrutura permite pensar a escrita do Sudoeste não apenas como sistema linguístico, mas como ato de pensamento materializado.

  • O ícone, por semelhança, aparece nas figuras gravadas (armas, animais, astros).

  • O índice, por contiguidade, manifesta-se no gesto físico da incisão — o corte no xisto que testemunha uma presença humana.

  • O símbolo, por convenção, surge nos traços repetidos e codificados da escrita, cuja leitura hoje se tenta decifrar.

Assim, cada estela é um sistema misto de signos, no qual a imagem (ícone), a marca (índice) e a letra (símbolo) convivem. Essa convivência é o que Peirce chamaria de “semiose contínua”: o processo infinito pelo qual os signos geram outros signos e interpretantes. As pedras de Almodôvar são, nesse sentido, nós de uma cadeia de pensamento que atravessa milênios.

A escrita dos cônios é também um testemunho de que a consciência simbólica antecede a filosofia: nela, a palavra ainda não se separou da coisa, e o signo é extensão do gesto ritual. O corte na pedra é um ato de mediação — a passagem do mundo natural ao cultural. Peirce chamaria isso de “primeiridade” e “segundidade” em tensão, que culmina na “terceiridade” do signo — a mediação representacional.


5. Semiose e arqueologia: leitura das estelas de Almodôvar


Na estela de S. Martinho (Silves), estudada por Amílcar Guerra (2002), encontramos cerca de sessenta signos dispostos em linhas irregulares. O texto, ainda indecifrado, parece seguir um formulário funerário, talvez invocando nomes ou fórmulas de consagração. A alternância de traços retos, curvas e ângulos sugere não apenas fonemas, mas ritmos visuais, compondo uma partitura simbólica.

Esses signos — semissilábicos — representam provavelmente sons e sílabas, mas também idéias-imagens. A ausência de interpuncões e a alternância de direções indicam que a leitura era tanto visual quanto ritual: talvez recitada em voz alta diante da estela, em cerimônias de memória dos mortos. Assim, o signo não é mera inscrição: é ato performativo, um índice de presença.

Ao observarmos o conjunto do museu, percebemos que a disposição das estelas cria um discurso museográfico: o visitante caminha entre signos que já não se leem, mas que o interpelam. A semiose, nesse contexto, desloca-se do arqueólogo para o observador contemporâneo — somos nós os novos interpretantes do signo.


6. A visita ao Museu da Escrita do Sudoeste


Nossa visita ao museu, realizada antes da reabertura de 2024, coincidiu com a exposição Almodôvar: território em escrita. O edifício temporário, no antigo Convento de São Francisco, possuía vitrines discretas e iluminação baixa, realçando os relevos das estelas. Já na nova sede da Rua do Relógio, inaugurada em junho de 2024, o espaço foi ampliado, modernizado e premiado pela APOM em 2025, unindo design contemporâneo e tecnologia interativa.

A sensação, tanto antes quanto agora, é de estar diante de um texto sem língua — um texto que se sabe escrito, mas cujo código se perdeu. A impossibilidade de leitura produz um efeito paradoxal: quanto menos compreendemos as letras, mais as sentimos como signos do mistério. Peirce diria que o interpretante final é aqui o sentimento de “admiração” — a consciência do enigma como parte da experiência semiótica.


7. A escrita como semiose fundadora


Se tomarmos a história da escrita como uma história da semiose, Almodôvar representa um momento inaugural: o instante em que o signo emerge da matéria e o pensamento se faz visível. Não se trata de mero registro técnico, mas de evento cognitivo — o nascimento da representação.

A escrita dos cônios pode ser vista como um primeiro ensaio da mente ibérica em direção à abstração. Nela, a linguagem ainda é corpo; o traço ainda é gesto; o signo ainda respira o sopro do que representa. É uma escrita que pensa, e uma pedra que lembra. A arqueologia encontra, aqui, a filosofia: o signo é tanto vestígio quanto ideia.

A semiótica visual, na esteira de Winfried Nöth, ensina que toda imagem é signo e toda escrita é imagem. Assim, a leitura das estelas de Almodôvar situa-se entre o verbal e o visual, entre o que se diz e o que se mostra. A escrita do Sudoeste é, nesse sentido, uma protoimagem da palavra — o nascimento simultâneo do símbolo e da consciência de simbolizar.


8. Conclusão: o pensamento gravado


As estelas dos cônios não falam, mas pensam. Pensam com o corpo do xisto, com a geometria dos traços, com a paciência da erosão. São páginas minerais de uma filosofia não escrita, cuja gramática se perdeu, mas cujo espírito permanece.

Se Peirce tivesse caminhado por Almodôvar, talvez visse nelas o exemplo mais puro de sua teoria: o signo que, antes de ser linguagem, é relação viva entre mundo, forma e mente. As pedras do Sudoeste não pertencem apenas ao passado arqueológico de Portugal, mas ao presente filosófico da humanidade. Nelas, o pensamento não se escreve — grava-se.


9. Bibliografia


  • Amílcar Guerra, Novos monumentos epigrafados com escrita do Sudoeste da vertente setentrional da Serra do Caldeirão, Revista Portuguesa de Arqueologia, 5(2), 2002.

  • Amílcar Guerra, Algumas observações sobre a escrita do Sudoeste, Actas do 7º Encontro de Arqueologia do Algarve, 2009.

  • Virgílio Hipólito Correia, A escrita do Sudoeste da Península Ibérica: velhos dados, novas teorias, Portvgalia, vol. 35, Porto, 2014.

  • Víctor Manuel Villegas Fernández, La escritura del S.O. Peninsular, Universidad de Huelva, 2015.

  • Carlos G. Wagner, Fenicios y autóctonos en Tartessos, Trabajos de Prehistoria, CSIC, Madrid, 1995.

  • Winfried Nöth, Semiótica Visual, Tríade, Sorocaba, v. 1, n. 1, 2013.

  • Museu da Escrita do Sudoeste (MESA) — Catálogo Almodôvar território em escrita, Câmara Municipal de Almodôvar, 2009; nova edição 2024.

 
 
 

Posts recentes

Ver tudo
Minha Palavra do Ano: Inominável

Por Glênio S. Guedes ( advogado ) 1. O ritual anual das palavras Há algo de profundamente civilizatório no gesto de eleger uma “Palavra do Ano”. É um mecanismo simbólico de autoconsciência: ao nomear,

 
 
 
O Direito opera com razões, não com sinapses

“O ser humano não é livre no sentido metafísico absoluto, mas é livre no sentido argumentativo, linguístico e jurídico.” Por Glênio S Guedes ( advogado ) Há, em nosso tempo, uma tendência inquietante:

 
 
 

Comentários


bottom of page