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A Palavra é Signo e Fragmento Conceptual do Mundo. Temos consciência disso?

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    gleniosabbad
  • há 2 dias
  • 3 min de leitura

Autor: Glenio S. Guedes ( advogado )


«Cada palavra é um pedaço do universo. Um pedaço que faz falta ao universo. Todas as palavras juntas formam o Universo.»— Almada Negreiros


I. A respiração da palavra


Há livros que não se abrem: abrem-nos. O de Mário Vilela é desses. Nele reencontramos algo que, por demasiado íntimo, quase esquecemos: a palavra respira. E cada palavra que respira o faz com o ar do mundo — e com o nosso.

Não há gesto humano que não esteja já impregnado de linguagem. Não há silêncio que não carregue sombra de discurso. E, todavia, caminhamos pela vida como quem pisa um chão sólido, sem saber que esse chão é feito de palavras sedimentadas, camadas e camadas de experiência transformada em signo.

Vilela, retomando Almada, sussurra-nos ao ouvido: a palavra não nomeia o universo — ela o compõe.


II. O signo e o seu segredo


Os manuais ensinaram-nos que a palavra é signo. Assim a concebemos: uma peça dentro de uma engrenagem invisível, um objeto quase matemático, metade som, metade ideia.

Mas o signo — assim como o espelho — engana. O espelho mostra o que está diante; a palavra mostra o que está dentro. O signo oculta porque revela demais: finge neutralidade, quando é fervura.

Nenhuma palavra é inocente. A etimologia, quando a escutamos com reverência, mostra que cada vocábulo conserva a vibração de todas as mãos que o tocaram ao longo dos séculos. Tomar uma palavra entre os dedos é tocar uma genealogia.

Por isso a semântica não é ciência fria; é arqueologia do espírito humano.


III. A metáfora que nos antecede


Antes de o homem pensar metaforicamente, foi pensado pela metáfora. O corpo, ao tentar compreender-se, estendeu-se sobre o mundo. Daí nascem expressões que parecem triviais:


  • peso da responsabilidade

  • calor humano

  • linha do horizonte moral

  • altura de caráter


Não são riscos no papel; são rastros do corpo deixados na linguagem. A metáfora é a mais antiga das pedagogias: ensinou-nos a reconhecer o abstrato na carne, e o invisível na mão que toca.

Por isso Vilela insiste: a metáfora estrutura, não enfeita. É o andaime invisível sobre o qual erguemos o edifício do pensamento. Quando se retira a metáfora, o edifício não perde ornamento — perde chão.


IV. O perigo da inconsciência


Há quem viva dizendo palavras como quem respira sem ouvir o próprio fôlego. E, no entanto, cada vocábulo transporta um juízo embutido, uma inclinação secreta, uma leve torção da alma. Chamamos isso hoje de frames, de modelos conceptuais; ou, a alma da língua!

Quando dizemos povo, a quem chamamos? Quando dizemos segurança, a que tremor nos agarramos? Quando dizemos corrupção, que cheiro de mofo — tão antigo quanto o latim rumpere — invade o ar?

A ignorância dessas vibrações é perigosa: deixa-nos entregues a palavras que pensamos conduzir, mas que nos conduzem.


V. A responsabilidade de nomear


Nomear é sempre um ato de responsabilidade. É como acender uma lâmpada num quarto escuro: onde antes havia indistinção, agora há contorno, forma, possibilidade. A palavra abre caminho, mas também o fecha; torna visível, mas também cega.

Se cada palavra é um pedaço de universo, como advertiu Almada, então cada escolha vocabular é um gesto cosmológico. Ao dizer, acrescentamos ao mundo aquilo que nele pode ser pensado. E, inversamente, o que não sabemos dizer, nunca veremos plenamente.

É por isso que a linguagem não é ornamento do pensamento: é sua respiração profunda, sua ossatura secreta.


VI. Uma pedagogia da escuta semântica


Precisamos reaprender a escutar as palavras. Escutá-las como quem escuta água subterrânea: há mais correntes debaixo do solo do que à superfície.

A língua é “uma herança que se recebe já iluminada pelas mãos que a usaram”, dizia Gradstone Chaves de Melo, um de nossos grandes filólogos. Vilela acrescenta que essa herança é feita de metáforas, estereótipos, frames, tudo aquilo que nos permite pensar antes mesmo de decidirmos pensar.

Nessa pedagogia da escuta, a semântica revela sua verdadeira vocação: não apenas explicar o funcionamento das palavras,mas iluminar o modo como elas nos fazem ser.


VII. Conclusão: o universo que falta


No fim, resta-nos a pergunta inicial: temos consciência de que cada palavra é um fragmento conceptual do mundo?

Talvez não. E, no entanto, basta observar o modo como uma palavra nova — ou um uso novo — altera a atmosfera mental de uma época para compreender o alcance desse fato.

Há universos inteiros que aguardam o instante de ganhar nome. Há pedaços de realidade que só se tornam visíveis quando a palavra — esse pequeno milagre — os visita.

A consciência disso não nos torna apenas melhores falantes. Torna-nos, sobretudo, habitantes mais lúcidos do universo que as palavras compõem.


Bibliografia


  • VILELA, Mário. Metáforas do Nosso Tempo. Coimbra: Almedina.

  • ALMADA NEGREIROS. A invenção do dia claro. Sintra: Colares Editora, 1993.



 
 
 

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