A Importância da Escola de Bruxelas na Teoria da Argumentação
- gleniosabbad
- 29 de out.
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Entre a moral dos valores, a razão do razoável e a problematologia da linguagem
Por Glênio Sabbad Guedes
1. Introdução: a redescoberta do logos dialogal
Poucas correntes intelectuais do século XX exerceram tanta influência silenciosa quanto a Escola de Bruxelas, núcleo belga de filosofia que reformulou as bases do pensamento racional moderno. Contra o formalismo lógico e o dogmatismo científico da modernidade, a Escola propôs algo radicalmente simples: a razão só é legítima quando se justifica perante o outro.
Da filosofia moral de Eugène Dupréel, passando pela Nova Retórica de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, até chegar à Problematologia de Michel Meyer, a Escola de Bruxelas formou uma genealogia da razão comunicativa, anterior a Habermas e paralela à hermenêutica de Gadamer e Ricoeur.
Como mostra Rui Alexandre Grácio em Racionalidade Argumentativa, essa tradição representa uma “filosofia da convivência”, em que o diálogo não é instrumento, mas condição da verdade.
2. Eugène Dupréel: a sociologia dos valores e o nascimento do razoável
O ponto de partida é Eugène Dupréel (1879–1967), professor da Universidade Livre de Bruxelas, cuja obra Traité de morale (1932) propôs uma sociologia dos valores como alternativa ao relativismo e ao dogmatismo ético. Dupréel rejeitava tanto o absolutismo moral kantiano quanto o ceticismo utilitarista: entre ambos, via um espaço de construção social dos valores — o do razoável, onde as normas humanas são fruto da deliberação e da persuasão.
Para Dupréel, os valores não derivam de uma essência transcendental, mas de acordos intersubjetivos; eles são produtos da argumentação social. Essa moral do razoável antecipa a noção contemporânea de deliberação democrática, e constitui a matriz ética da Escola de Bruxelas.
Chaïm Perelman, seu discípulo mais notável, transformaria essa intuição em filosofia do direito e teoria da argumentação.
3. Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca: a Nova Retórica e a razão prática
Com Chaïm Perelman (1912–1984) e Lucie Olbrechts-Tyteca (1899–1987), a Escola de Bruxelas ganha dimensão sistemática e interdisciplinar. Em 1958, publicam o monumental Traité de l’argumentation – La nouvelle rhétorique, obra que inaugura uma nova epistemologia da razão.
O objetivo de Perelman era reconstruir a racionalidade filosófica e jurídica para além do modelo científico de demonstração. Contra o ideal cartesiano de evidência, ele propõe a razão do razoável: aquela que busca a adesão dos espíritos livres, não pela força, mas pelo convencimento.
No centro de sua teoria está a distinção entre dois tipos de auditório:
O auditório particular, composto pelos destinatários concretos de um discurso (juízes, cidadãos, eleitores, estudantes);
O auditório universal, uma ficção ética que representa a totalidade dos seres racionais capazes de compreender razões.
O argumento é racional quando poderia ser aceito por todos os espíritos razoáveis, e não quando é logicamente necessário. A retórica, assim, deixa de ser um artifício de persuasão e se torna a gramática moral da razão prática.
3.1. O Direito como laboratório da Nova Retórica
A filosofia de Perelman encontra no Direito o seu campo privilegiado de realização. Ao estudar o raciocínio jurídico, Perelman demonstra que o juiz não deduz, mas delibera; ele não aplica silogismos, mas argumenta. A sentença, nesse sentido, é um discurso de justificação dirigido a um auditório racional — a comunidade jurídica e moral.
Sua obra Justice et raison (1963) formula a mais bela das sínteses:
“A justiça é o esforço de tratar de modo igual o que é igual, e de modo diferente o que é diferente, segundo uma regra que se possa justificar diante de todos.”
Essa ética da justificação pública transforma o exercício do poder em ato de racionalidade comunicativa. O juiz, o legislador e o cidadão compartilham o mesmo dever: dar razões.
4. Michel Meyer: a problematologia e o retorno da pergunta
A terceira fase da Escola de Bruxelas é marcada por Michel Meyer (n. 1950), discípulo de Perelman e fundador da problematologia. Meyer parte de uma tese simples, mas revolucionária: todo discurso é resposta a uma pergunta. Enquanto a lógica clássica privilegia a verdade das proposições, a problematologia privilegia a pertinência das perguntas.
Assim, argumentar é situar-se no espaço do questionamento — é construir sentido por meio da relação entre o dito e o perguntado. O que Perelman havia feito pela ética do discurso, Meyer faz pela ontologia da linguagem: ele desloca o foco da “verdade demonstrada” para a verdade interrogada.
A racionalidade deixa de ser o produto de certezas e passa a ser o resultado de um diálogo incessante entre perguntas e respostas. A filosofia torna-se, novamente, uma arte da escuta — e o argumento, uma forma de convivência cognitiva.
5. Rui Alexandre Grácio: a síntese lusófona da racionalidade argumentativa
Em Racionalidade Argumentativa (Almedina, 1995), Rui Alexandre Grácio realiza a mais abrangente leitura da Escola de Bruxelas em língua portuguesa. Grácio descreve o percurso de Dupréel a Meyer como a passagem da moral dos valores à ética da justificação, e desta à ontologia da comunicação.
Para o autor, a racionalidade argumentativa é uma forma de resistência à violência — uma ética da justificação e da prudência. Ela substitui a busca da verdade absoluta pelo dever de fundamentar-se diante do outro. Trata-se de uma filosofia do diálogo, em que a racionalidade não é atributo do sujeito isolado, mas resultado de uma prática discursiva coletiva.
Grácio resume:
“Argumentar é romper a inércia do senso comum, é submeter à prova do outro aquilo que pretendemos razoável.”
Essa definição sintetiza o legado da Escola de Bruxelas e sua relevância contemporânea para o direito, a política e a comunicação.
6. A herança viva da Escola de Bruxelas
Hoje, os ecos da Escola de Bruxelas ressoam em várias áreas:
Na teoria do direito, com Perelman, Alexy e Atienza, que traduzem a razão prática em princípios de deliberação jurídica;
Na filosofia política, em Habermas e Apel, que radicalizam a ideia de argumentação como condição da legitimidade democrática;
Na hermenêutica, em Ricoeur, que vê na argumentação o espaço intermediário entre o texto e a ação;
Na ética contemporânea, em que o razoável substitui o absoluto, e o consenso justificado torna-se o critério da moralidade pública.
Em todos esses campos, permanece a lição fundamental:
não há racionalidade sem alteridade.A razão que não se prova diante de outrem não é razão, é poder.
7. Conclusão: o direito à razão e a razão do direito
A Escola de Bruxelas transformou a maneira como compreendemos a racionalidade humana. De Dupréel a Meyer, passando por Perelman, ela ensina que a razão não é propriedade de quem fala, mas conquista de quem convence — e, sobretudo, de quem escuta.
Essa virada ética e comunicativa molda o modo moderno de pensar o Direito: um espaço público de justificações recíprocas, em que a legitimidade do poder depende da força do melhor argumento.
Por isso, a importância da Escola de Bruxelas ultrapassa a teoria da argumentação: ela constitui uma filosofia da convivência racional, um convite a transformar o logos em instrumento de justiça e de paz.
Referências
DUPRÉEL, Eugène. Traité de morale. Bruxelles: Presses Universitaires de Bruxelles, 1932.
GRÁCIO, Rui Alexandre. Racionalidade argumentativa. Porto: Edições ASA, 1993.
MEYER, Michel. A problematologia: Filosofia, ciência e linguagem. Tradução de Sandra Fitas. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1991.
PERELMAN, Chaïm. Justice et raison. Bruxelles: Presses Universitaires de Bruxelles, 1963.
PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
PERELMAN, Chaïm. O império retórico: Retórica e argumentação. Tradução de Fernando Trindade e Rui Alexandre Grácio. Porto: Edições ASA, 1993.
PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: A nova retórica. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014.


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